São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 1994
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Jazz precisa ser sempre chato

GUGA STROETER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Louis Armstrong caminhava à beira do Mississipi em uma tarde quente do verão de 1954. Olhava para as águas caudalosas e divagava. Foi então que emitiu o axioma:
``O jazz não é um `o quê', o jazz é um `como'."
Satchmo foi profético e tudo veio a ser jazz. Jazz que implodiu suas próprias estruturas nos anos 60 e tornou-se o ``free jazz". Jazz que fundiu-se ao rock nos anos 70. Jazz que viveu ventos de renascença na geração classicista dos Marsalis nos anos 80.
A recalcada questão do que é e do que não é jazz caducou epistemologicamente (podemos dar um nome para aquilo que o artista faz, mas não podemos impedir que no momento seguinte ele faça alguma coisa absolutamente diferente...).
No Free Jazz deste ano teremos uma noite que homenageia essa dúvida reprimida, a do jazz rap. Imaginemos uma platéia dividida por um cordão e um batalhão de choque da PM. Rappers na geral, jazzófilos nas numeradas.
Ao formular tal fantasia fui procurar representantes das duas vertentes. Falhei em parte. Na pressa do dia não encontrei o rapper, mas conversei com um jazzófilo feérico, um Mancha Verde do ``mainstream". Sob a custódia do anonimato, ele me revelou seus sentimentos mais íntimos. E foi explícito: os rappers consideram o jazz um saco, enquanto os jazzistas consideram o pop e o rap uma banalidade tediosa.
Para ele, o jazz precisa necessariamente ser chato, ser um mau negócio e fazer mal à saúde. Para afugentar o leigo, longas improvisações podem e devem se tornar monótonas. E, enquanto os astros do pop compram iates e castelos, os músicos de jazz devem viver seu apogeu nas espeluncas, se drogando pelos cantos.
A meu pedido, escutamos juntos os CDs do Jazzmatazz e do US3. Na minha avaliação, tratam-se de trabalhos muito diversos. Enquanto o US3 aproveita a linguagem do jazz conferindo-lhe inteligente tratamento pop, o Jazzmatazz aprisiona excelentes solistas de jazz humilhados sob o tacão inclemente de uma bateria eletrônica e de uma mixagem que nos leva a imaginar que eles são apenas músicos praticando seus instrumentos na casa do vizinho.
Terminamos a noite conversando sobre a programação do Free Jazz. Era alta madrugada, e ele, bêbado e exausto, parecia mais condescendente. Conseguia admitir o talento da gordinha obscena Etta James. Falou com ternura de Mel Tormé, Abbey Lincoln, J.J. Johnson, Jackie McLean. Olhava com enlevo para o CD de Joshua Redman e suspirava:
``Esse garoto vai longe!"

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