São Paulo, terça-feira, 18 de outubro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A falsa conquista

RICARDO SEITENFUS

``Os presunçosos se oferecem, mas os homens de verdadeiro valor preferem ser chamados."
(Louis de Bonald, 1754-1840)

Desde a criação da Organização das Nações Unidas, eclodiram no mundo mais de 200 guerras, ocasionando 20 milhões de mortes e número equivalente de refugiados. Não conseguindo cumprir o seu papel precípuo, qual seja o de assegurar a manutenção da paz, a ONU volta-se, então, para políticas de apoio ao desenvolvimento. Obtém certos êxitos na área social, ainda que o assistencialismo contribua antes para manter a desigualdade do sistema internacional do que para transformá-lo.
O palco preferencial para a assistência prestada pelas Nações Unidas é o chamado Terceiro Mundo, cujas características socioeconômicas podem ser, em muitos aspectos, facilmente verificadas no Brasil. Entretanto, o Ministério das Relações Exteriores dificulta a cooperação internacional na área social, em detrimento dos bolsões de miséria existentes no território brasileiro.
A atitude governamental baseia-se numa equivocada concepção sobre o que deve ser o prestígio internacional. Assim, pretende que o Brasil seja visto pelo exterior por meio de obras como Itaipu e Carajás, como se possível fosse ocultar feridas como a Candelária e o Carandiru.
De outra parte, em nome desse mesmo prestígio, Brasília acalenta a pretensão de participar, em caráter permanente, do Conselho de Segurança (CS) da ONU. Percebendo que a ONU não constitui um poder comum internacional e levando em conta que não admitimos receber aquilo que ela nos poderia oferecer, qual seria, então, o interesse do Brasil em defender essa reivindicação?
Ressalte-se que nenhuma decisão pode ser tomada no Conselho sem a unanimidade entre os cinco países que detém o poder de veto –China, EUA, França, Inglaterra e Rússia– por eles invocado mais de 230 vezes. Porém, a proposta de reformulação compreende apenas a criação de novas cadeiras permanentes sem direito a veto. Restaria aos novos membros estar ao lado dos poderosos para avalizar suas ações e omissões.
Procurando dourar a pílula, o governo disputa, como se fora uma conquista, a presença formal do país em um organismo onde não haverá o que influir; ao contrário, apenas arcar com o ônus das definições dos grandes. Ora, se a nossa ambição é fazer eco aos países detentores do poder de veto, não há necessidade de participar formalmente do CS.
A posição que o Brasil tem adotado em relação ao Haiti, na condição de membro transitório da qual desfruta atualmente, é significativa: em pelo menos dois momentos cruciais utilizou-se do recurso da abstenção. O CS lhe serve como uma confortável vitrine, mas não há coragem para um sólido voto contrário.
Aparentemente, o Brasil está buscando legitimar-se junto aos países da América Latina, defendendo, via abstenção, sua posição retrógrada e desumana. Por outro lado, insinua um enfrentamento com os EUA, que jamais ocorreria caso tratássemos de relevantes questões bilaterais ou interesses econômicos. O povo haitiano pode ser esquecido, em nome da auto-afirmação de uma política externa anacrônica e pouco criativa.
Todavia, ainda que se negligencie a pauta de discussões que efetivamente interessa à política externa brasileira, e admita-se discutir a aparência do poder, e não o poder real, não devem ser esquecidas as lições da nossa história.
Podemos apresentar como pontos favoráveis à candidatura o pacifismo de nossa política externa, nossa dimensão continental que abriga numerosa população, as fronteiras com todos os países sul-americanos –exceto o Chile e o Equador. Porém, tais argumentos já foram rejeitados unanimemente pelos países hispano-americanos, em 1926.
Naquela ocasião, o Brasil pretendeu, sem negociação prévia, tornar-se membro permanente do Conselho da Liga das Nações e foi recusado.
Vigente, à época, a regra do consenso entre todos os membros (inclusive os transitórios como o Brasil), os brasileiros opuseram-se, como represália, ao ingresso da Alemanha, medida fundamental à Europa do pós-Guerra. Provocou-se uma situação insustentável, que obrigou o Brasil a abandonar a Liga das Nações.
O Brasil não pode representar somente a si próprio. Para aspirar à cadeira de membro permanente no CS da ONU, deverá ascender à condição de representante regional. Todavia, os países latino-americanos demonstram pouco entusiasmo; na última reunião do Grupo do Rio, o Brasil conseguiu tão-somente uma declaração sobre a necessidade da representação da América Latina no CS.
A clara oposição argentina e as reservas emitidas pela maioria dos outros países denotam que os obstáculos à pretensão brasileira começam precisamente de onde deveria partir sua espontânea indicação.
Seria, contudo, mais plausível a formação do CS a partir da representação das regiões do mundo, cujos mandatários fossem apontados em negociações intra-regionais, compreendendo o voto ponderado e o sistema de rodízio.
Enfim, o que há de inaceitável nesse debate é que o governo brasileiro, atribuindo extrema relevância a uma falsa e improvável conquista, pretende fazer a grande política, mas descura-se de uma estratégia sólida e paciente como, por exemplo, a ocupação dos níveis inferiores de decisão das instituições internacionais.
O CS só pode nos trazer pequenas e aparentes vantagens, impondo o alto preço de avalizar a perenidade do injusto sistema internacional.

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS, 46, doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais em Genebra, autor do livro ``Para uma Nova Política Externa Brasileira", é coordenador do curso de Mestrado em Integração Latino-Americana da Universidade Federal de Santa Maria (RS).

Texto Anterior: A opção Mário Covas
Próximo Texto: Bastidores e compromissos; TSE no feriado; Saúde pelo ralo; Saneamento das polícias; Ciência, pura abnegação; Instalação de Cony; Difícil escolher; Bancada do PSB
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.