São Paulo, quarta-feira, 19 de outubro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Freud vira objeto de fetiche e desconfiança

MARCELO COELHO

Da Equipe de Articulistas A coleção de antiguidades do dr. Freud está exposta em São Paulo, no Espaço Banco Real (av. Paulista, 1.374). Um belíssimo catálogo (melhor que a própria mostra) se encontra à venda.
A coleção, em si, é decepcionante. Há belas peças, como um Eros de terracota, uma Palas Atena de bronze. Vasos gregos em quantidade, estatuetas egípcias, um lindo camelinho chinês falsificado.
No catálogo, tudo fica mais bonito, já que a dimensão real de cada objeto se perde; as fotos fazem toda quinquilharia revestir-se de uma aura própria, de um fundo neutro, de iluminações especiais, de importância fantasmagórica.
Na exposição, o que vemos é uma série de esculturazinhas, egípcias, gregas, romanas; amuletos, utensílios, escaravelhos, bonequinhos. Tudo muito pequeno, na acumulação enjoativa do colecionismo burguês.
Mas ninguém está indo ver a exposição por interesse artístico ou arqueológico. Vai porque aqueles objetos antigos pertenceram a Sigmund Freud. Configura-se, assim, uma perversão ou, pelo menos, uma ironia: as estatuetas que serviram há milênios para o culto de Ísis e Osíris, de Eros e de Astartéia, servem hoje ao culto de Freud.
Freud nos interessa mais do que os todo-poderosos deuses da morte e do amor. O que é uma boa notícia, pois esses deuses nunca existiram. A má notícia é que o espírito de culto, o fetichismo continuam, e comparecer à mostra do Banco Real (belo nome, este) tem alguma coisa de religioso.
O catálogo da mostra inclui alguns artigos de especialistas. Tanto o bom artigo de Peter Gay, biógrafo de Freud, quanto o nada brilhante artigo de Donald Kuspit insistem num ponto óbvio. Freud interessava-se por arqueologia (leu mais livros sobre esse assunto do que sobre medicina e psiquiatria); ora, a psicanálise é uma espécie de arqueologia da mente: escava o esquecido e constitui fragmentos, examina o subsolo psíquico. E o próprio Freud sabia disso, sendo frequentes as comparações que ele faz entre o trabalho do psicanalista e o do arqueólogo.
A doutrina freudiana também explica o ato de colecionar, o vício anal da aquisição.
Tento enriquecer o óbvio dessas considerações, a meu ver automáticas. O que me espanta, nessa coleção de Freud, é o seguinte: na sua mesa de trabalho, ele punha fileiras e mais fileiras de estatuetas. Escrevia seus estudos diante de uma multidão de deuses egípcios.
Outra coisa me inquieta: por que é que ele não colecionava imagens católicas? Santos barrocos, por exemplo? A Áustria teve um bom momento barroco.
A primeira impressão que tenho, diante do acúmulo de ídolos na mesa de trabalho de Freud, é a de que ele os via não como presença tutelar e mística, mas como uma hoste de inimigos. Aqueles deuses terríveis do Egito, aquelas cenas elementares de aleitamento, de fertilidade e falo, tinham o caráter de esfinges cujo enigma ele, Freud, como Édipo, iria decifrar a cada escrito.
Trata-se, então, de uma coleção de adversários, de inimigos, de ancestrais hostis, de bárbaros. Adquiri-los era um conforto. Tê-los perfilados à mesa de trabalho era um suave e burguesíssimo desafio.
É assim que algumas pessoas preferem ter gatos a ter cachorros. O gato, mais comodista e menos afetuoso, tem uma beleza desafiadora e impenetrável. O cachorro é transparente, carinhoso, eufórico. O gato representa a inquietude e o silêncio do lar; encena uma forma elegante e espreguiçada de se estar consigo mesmo. O cachorro é estar com os outros, acrescido da vantagem que há no fato de esta sociabilidade simples não conter nenhum mistério, nenhuma dúvida face ao que os outros pensam.
De certo modo, parece que Freud preferia companhias mais misteriosas, menos explícitas: o Egito, nas escuridões de bronze, nas monstruosidades da idolatria, no hierático dos deuses, nas múmias, na morte.
Os adversários concretos da psicanálise situavam-se em outro campo –o da religião cristã. Madonas, serafins, santos e santas –talvez Freud não tivesse ânimo de encará-las de frente, colecionando imagens barrocas.
Pois o mundo pagão é mais freudiano: amuletos de fertilidade, expostos na coleção, são bastante explícitos no que tange a tetas e pintos. Em suma: é como se, desafiando diariamente a hoste dos deuses gregos e egípcios, Freud se defrontasse, ambivalente, com seus amigos/inimigos. A idolatria contra a religião, o paganismo despudorado contra os eufemismos católicos e, sobretudo, uma técnica leiga de ressurreição.
Pois a ressurreição católica depende de coisas como o bom comportamento e o juízo final. A ressurreição egípcia também depende de um comportamento ético. Mas a ressurreição arqueológica, a exumação feliz dos escavadores no deserto setentrional da África, deriva de uma visão mais infantil e menos retrospectiva: trata-se apenas de descobertas, não de julgamentos a respeito de nossa biografia individual passada.
E a psicanálise não é julgamento, mas descoberta. Nossa biografia ganha, assim, uma neutralidade quase egípcia nos silêncios do divã. Coisa oriental, aliás.
Ocorreu-me uma comparação idiota. É a seguinte: natural que exista tanto interesse pela coleção arqueológica de Freud, já que atualmente o próprio Freud está morto e que a psicanálise se mumifica.
Contesto a comparação. Essa moda de dizer que ``Marx está morto", que ``Freud está morto", significa apenas uma coisa –o fato de que seus ensinamentos, um dia escandalosos, já foram absorvidos pelo senso comum.
Freud, ou Marx, ``morreram" apenas porque, na cabeça dos que secretam sua morte, estão presentes num lamentável estado de obviedade. A mente moderna impregnou-se de Marx e Freud a tal ponto que se despreza a contribuição deles.
Critica-se a ``cientificidade" das teorias de Freud. Popper, por exemplo, não concede nenhum estatuto científico ao que Freud escreveu. E é convincente a esse respeito. Mas seria o caso de pensar num gradiente contínuo entre ciência e mito. Freud não é tão científico quanto um Prêmio Nobel de Química. Mas é mais científico do que o horóscopo, por exemplo.
Não sei a psicanálise, como técnica terapêutica, sobreviverá. Sei que Freud sobreviverá e que sua coleção de antiguidades, suas estatuetas arqueológicas significam, antes de tudo, um fascínio pela morte –mas, como se trata de morte pagã, trata-se também de fascínio pela vida, pelo ativismo sexual, pela violência que há no amor e na existência, coisas em que Freud nos fez acreditar.

Exposição: Antiguidades de Freud
Onde: Espaço Banco Real (av. Paulista, 1.374, tel. 011/251-9472)
Quando: de segunda a sexta, das 10h às 17h, sábado, das 10h às 14h; até 20 de novembro.

Texto Anterior: Led Zeppelin volta com toque oriental
Próximo Texto: Produtor vê esgotamento da temática da violência
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.