São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Tudo em família

MARCELO LEITE

Quando escrevi minha primeira coluna como ombudsman, publicada no último dia 2, não imaginava que uma simples nota –``Na ponta da língua"– causasse tanta repercussão. Nela eu anunciava a intenção de vigiar de perto o texto jornalístico, que estaria precisando de um ``choque de português".
Para surpresa minha, fez mais sucesso do que meu balanço da cobertura das eleições, no qual afirmava que a imprensa tinha ``henricado", sim. Recebi algumas manifestações de apoio por esse julgamento sumário, mas nada comparável ao número de cartas e telefonemas que me incentivavam a uma cruzada pró-língua.
Em respeito à vontade do leitor, abordo hoje uma faceta dolorosa da decadência do texto jornalístico: a desarticulação narrativa. Contar mal uma boa história é uma das formas mais encontradiças de imperícia em minha profissão, tanto mais grave em um mundo em que a sucessão de imagens e módulos de informação criam a ilusão de simultaneidade em que nada dura, só se envelhece.
Pelos fantasmas e temores ancestrais que mobiliza, o noticiário policial compõe oportunidades privilegiadas para arrancar o leitor do fluxo besta de seu dia-a-dia. Quando ocorre um crime incomum, desses que põem a nu toda a barbárie humana, aguça-se o apetite de quem tem um jornal em mãos por uma narrativa decente. Não digo nem por uma obra-prima como ``A Sangue Frio", de Truman Capote, mas ao menos uma história com começo, meio e fim. Coitado do leitor.
As semanas que passaram ofereceram não só uma, mas duas dessas chances normalmente únicas. Com intervalo de apenas dez dias, aconteceram dois casos de assassinatos múltiplos em famílias não-proletárias, cujas autorias foram quase imediatamente atribuídas a seus próprios filhos.
Gustavo Pissardo, 21, confessou ter executado com tiros na cabeça pai, mãe, irmã e avós, em São José dos Campos e Campinas, dois importantes centros a menos de 100 km de São Paulo.
Em Porto Alegre, a confissão foi de Carlos Alberto Oliveira, 35, o ``Beto". Com a ajuda de um ex-PM, teria abatido os pais a facadas: 36 no pai, 20 na mãe.
Desde os primeiros dias de cobertura do caso Pissardo, alertei –em vão– na crítica da edição que circula diariamente na Folha para o mau desempenho do jornal.
No confronto com o material publicado por seu concorrente direto, ``O Estado de S.Paulo", isso ficava evidente. Dia após dia, o outrora sóbrio jornalão paulista se esmerava na apresentação de detalhes sensacionais, como a compra de bermudas por Gustavo entre as duas etapas do morticínio.
Na edição do dia 5, por exemplo, a Folha socou esse caso vibrante em meras 29 linhas de um texto de duas colunas em página par (menos nobre do que as ímpares) do caderno Brasil. Nas poucas vezes em que obteve informações mais elucidativas, como o fato de Gustavo ter sido instrutor de tiro no Exército, publicou-a somente em seu caderno para o Vale do Paraíba, Folha Vale.
Algo de muito semelhante aconteceu com a cobertura do caso Oliveira, em Porto Alegre. Tomada de estupefação pelo que há de inexplicável nesses crimes, a imprensa –e não só a Folha– fica como barata tonta em meio a fontes policiais e psiquiátricas sequiosas de publicidade. Da objetividade idiota de delegados provincianos ao freudianismo capenga dos psi-qualquer coisa de plantão, sobrou desinformação.
Como exceções que confirmam a regra, destaco dois bons momentos em que talento, minúcia e sentido dramático conseguiram impor certa ordem estética nesse turbilhão de irracionalidades:
1. A reportagem ``Na verdade foi Gustavo quem morreu", publicada pelo jornal ``O Estado de S.Paulo" em 9 de outubro. Um vigoroso relato do drama da família Pissardo, narrado pela tia que só sobreviveu por acaso.
2. A reportagem de capa da revista ``IstoÉ" de 19 de outubro, ``Matar pai e mãe". O texto também incorre em muitos vícios, mas tem uma abertura primorosa.
Depois de inventariar em 29 linhas as incongruências entre as biografias de Gustavo e Beto, sem qualquer menção aos crimes que teriam cometido, arma-se a pergunta: ``O que há em comum entre `a ovelha negra' da família Oliveira e o filho amoroso e obediente da família Pissardo? Sangue".
É pura retórica, não resta dúvida. Mas é também a forma jornalística de fazer a inteligência triunfar sobre o inexplicável.

Já escrevi aqui que não considero que a imprensa tenha tanto poder quanto se atribui a ela, mas cada vez mais me convenço de que ela possui, de fato, um poder a um só tempo demolidor e insignificante: o de destruir reputações e o de pôr particulares em apuros.
Suponha o leitor que foi fotografado, sem se dar conta disso, na calçada defronte uma espécie de bar. Não importa muito o que você está fazendo por ali, se está só de passagem, foi buscar o carro no estacionamento do lado ou é de fato um frequentador da casa. A foto está feita, pronto.
Domingo, família reunida, o leitor abre seu jornal e dá de cara com a malsinada foto ilustrando uma reportagem sobre novos pontos de prostituição chique na cidade. A imagem, feita à distância, é meio borrada, parece tratar-se de mais um no time de manobristas, mas nenhum de seus conhecidos deixa de identificá-lo, imediatamente. Sua vida desaba, o casamento está por um fio.
Você fica possesso, está convencido de que o jornal teria de obter sua autorização para publicar a foto, quer abrir um processo. Dissipada parte da ira inicial e após algumas consultas, conclui que –ao menos no Brasil– não terá muita chance nos tribunais. Além disso, o que vai ganhar levando o caso a juízo? Nada que possa recompor sua família.
O jornal, de sua parte, alega que a imagem foi feita em local público e que nada na edição faz qualquer alusão a atos criminal ou moralmente condenáveis da parte do leitor. Mais ainda, a foto foi visivelmente feita com o propósito de dificultar a identificação.
Você está no mato e sem cachorro. Pode até queixar-se ao ombudsman, se o jornal que publicou a foto tiver um. Ele vai constatar, como você, que o mal está feito e não há Erramos no mundo que possa consertá-lo. Quando muito, vai concordar em que um pouco mais de cuidado, na escolha ou na edição da maldita foto, poderia livrá-lo do pesadelo que você está vivendo. Sozinho.

Prometi na semana passada que só voltaria ao tema do caderno Olho no Voto se a réplica dos jornalistas Elvis Cesar Bonassa e Daniela Pinheiro publicada nesta mesma página ensejasse alguma contribuição ao aperfeiçoamento de futuras publicações.
É o caso, por exemplo, do esclarecimento que eles ofereceram sobre o regimento interno da Câmara (que proíbe reuniões simultâneas do plenário e de comissões). Espero que na próxima publicação do gênero a Folha dê destaque a esse tipo de informação essencial para a validação dos critérios adotados.
Não resisto porém a prosseguir com essa espécie de briga em família, pois não posso deixar sem resposta a tentativa maldisfarçada de imputar-me uma mentira. Refiro-me à afirmação de Bonassa e Pinheiro de que a carta do deputado Fabio Feldmann fora objeto de resposta da Redação, ao contrário do que eu afirmara.
Feldmann enviou na realidade duas cartas para o Painel do Leitor da Folha. A primeira delas –publicada dia 20 de setembro– saiu sem resposta da Redação, apesar de apontar dois supostos erros do caderno (ele teria apresentado 26 e não 22 projetos, um dos quais teria sido transformado em lei, diferentemente do que se publicara).
Alertada na crítica da edição que circulou na última segunda-feira para essa omissão, a Redação providenciou verificação junto ao Centro de Informática e Processamento de Dados do Senado Federal. Segundo listagens oficiais do Prodasen, foram apresentados nesta legislatura por Feldmann só os 22 projetos mencionados no caderno. O que foi transformado em lei dataria da legislatura anterior.
Ou seja, o caderno não errou, neste caso, embora tenha dado impressão oposta ao deixar de responder a primeira carta.
Lamento que só agora, com mais de um mês de atraso e por iniciativa do ombudsman, o leitor receba essa satisfação.

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