São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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LACAN ANTES DO MITO

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

A biografia de Jacques Lacan por Elisabeth Roudinesco já tinha alcançado parte de seus objetivos antes mesmo de ser lançada.
O escândalo em torno de ``Jacques Lacan - Esboço de uma Vida, História de um Sistema de Pensamento" (Companhia das Letras, tradução de Paulo Neves, 564 págs., R$ 24,20) começou quando a autora rompeu com as edições do Seuil –que publicaram os dois volumes precedentes de Roudinesco sobre ``A História da Psicanálise na França" e encomendaram a biografia– sob alegação de que sofria pressões e ameaças de censura por parte da editora.
Essas ameaças –na verdade oriundas do lobby de Jacques-Alain Miller, genro de Lacan e executor testamentário da obra do mestre, publicada pelas mesmas edições do Seuil– certamente não foram causadas pelos defeitos do livro mas por suas qualidades.
Há sempre algo equívoco nas biografias –a vontade de revelar uma verdade que é sempre uma interpretação, por pressupor uma narrativa subjetiva do autor na ânsia de costurar uma linearidade lógica para a vida de seu biografado em vez de se contentar em apenas relatar os fatos.
As coisas não melhoram nem um pouco quando Roudinesco se justifica, dizendo estar fazendo uma ``biografia intelectual", ou seja, explicando os conceitos e conclusões teóricas a que chegou o biografado por uma psicologia primária de sua infância, vida familiar e afetiva, e origem social.
Mas para além dos reducionismos próprios às biografias, ``Jacques Lacan" tem pelo menos o mérito de sacudir o cenário dos poderes estabelecidos no meio psicanalítico francês ao tentar contextualizar e re-historicizar um pensamento que se tornou mítico para uma legião de seguidores idólatras em todo o mundo –e especialmente na América Latina (os ``lacano-americanos", segundo Roudinesco). Seu maior mérito é tentar fazer de Lacan um homem contra a imagem do mito.
Para isso, Roudinesco destaca passagens no mínimo desagradáveis da vida do mestre –e que depõem bastante contra o caráter pessoal de um dos intelectuais mais importantes do século.
Lacan foi um sedutor excêntrico que, até tarde em sua vida, quando já usava sua peruca ruiva e as roupas mais extravagantes, continuava em busca de novas conquistas. Chegou a manter duas vidas simultâneas quando, ainda casado com a primeira mulher, se tornou amante de Sylvia Bataille (ex-mulher de Georges Bataille) e teve uma filha, Judith, com ela.
``Durante vários anos, após a guerra, eles (os filhos Thibaut e Sibylle) não souberam que o pai vivia com Sylvia (...). Ignoravam também a existência da meia-irmã Judith. Jacques Lacan prestou-se a esse jogo de não-dito e de perfeito conformismo burguês."
Em 1949, Thibaut e Sibylle reconheceram o pai sentado ao volante de um carro, ao lado de uma mulher e com uma criança no banco de trás. ``Aproximaram-se gritando: `Papai! Papai!'. Lacan lançou-lhes um olhar de surpresa e, em seguida, desviou os olhos como se nada tivesse visto. Deu a partida e desapareceu no meio do trânsito", escreve Roudinesco.
A autora também é impiedosa quanto à relação do analista com o dinheiro: ``Durante uns dez anos, de 1970 a 1980, ele recebeu uma média de dez pacientes por hora (...). Ganhou portanto, graças à psicanálise, quatro milhões de francos anuais (...). Ao morrer, (...) Lacan era riquíssimo: em ouro, em patrimônio, em dinheiro líquido, em coleções de livros, objetos de arte e quadros".
O retrato que Roudinesco faz do mestre chega às últimas consequências ao reproduzir o depoimento de uma paciente, já na velhice do analista, doente, sofrendo de acessos de cólera: ``Um dia ele não suportou mais meu silêncio. Enquanto eu estava estendida, precipitou-se sobre mim (...) e me puxou os cabelos: `Você vai falar!' ", conta a cliente, que teve de se defender como pôde.

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