São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Lacanismo nos trópicos

MANUEL DA COSTA PINTO
DA REDAÇÃO

A escola psicanalítica criada por Jacques Lacan vive hoje um dilema que já incomodava o próprio Freud: a possibilidade de sua virulência teórica virar um dogma e das instituições psicanalíticas se tranformarem em seitas religiosas.
O pai da psicanálise definia sua criação como uma ``peste", destinada a corroer a mais arraigada crença na autonomia da razão.
Para manter este caráter subversivo, Freud propunha que as sociedades psicanalíticas se dissolvessem a cada dois anos, diluindo diferenças e permitindo a saída dos descontentes.
Não é estranho, portanto, que as sofisticadas discussões teóricas dos lacanianos, inclusive no Brasil, tenham como pano de fundo a proliferação de diferentes organizações.
Bacilo estruturalista
No Brasil, há um número enorme de instituições que surgiram e desapareceram, desde que o bacilo estruturalista do dr. Lacan desembarcou por aqui, na década de 70.
Segundo o psicanalista Oscar Cesarotto, de São Paulo, porém, todas elas têm um ponto em comum: a crença monolítica na teoria de Lacan.
Cesarotto faz parte da mais importante instituição lacaniana do Brasil, a Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano, que está ligada à Associação Mundial de Psicanálise (AMP), da França.
A AMP é presidida por Jacques-Alain Miller –o polêmico genro de Lacan, que recentemente foi processado pelo psicanalista Gérard Pommier. Para Pommier, Miller se prevaleceu de sua ``herança" familiar para atingir projeção internacional.
Ninguém questiona, porém, os méritos intelectuais de Miller, que Cesarotto define como um teórico brilhante. O que se coloca, portanto, é a contradição entre a unanimidade dos psicanalistas em torno do ``lacanismo" e suas diferenças pessoais e de conduta ética.
Na França, essas divergências representam um estado de permanente beligerância na disputa pelo espólio lacaniano. No Brasil, as diferenças ficam por conta de curiosos acasos históricos.
Na Bahia, por exemplo, existe uma hegemonia praticamente absoluta dos lacanianos sobre outras correntes de extração freudiana.
O psicanalista Aurélio Souza, um dos pioneiros da escola lacaniana baiana, afirma que essa predominância teórica se deve, em grande parte, ao desinteresse da Associação Brasileira de Psicanálise –um reduto da ortodoxia freudiana– em apoiar a formação de psicanalistas na Bahia.
``Eles propuseram um contrato leonino: seriam enviados dois psicanalistas, com a exigência de uma agenda completa e com um preço altíssimo por sessão", diz Aurélio Souza, que integra o grupo Espaço Moebius.
Lacan no Pelourinho
Como resultado, a Bahia tem hoje seis associações –todas lacanianas. A singularidade teórica desses grupos é, segundo Aurélio Souza, a leitura direta dos autores franceses, que vão a Salvador para seminários (caso, por exemplo, de Moustafha Safouan, um egípcio radicado na França e que era discípulo de Lacan).
Essa distinção é fundamental, já que grande parte da psicanálise lacaniana praticada em estados como São Paulo ou Rio Grande do Sul recebe a influência argentina da escola de Oscar Masotta.
Segundo o argentino Cesarotto, ``Buenos Aires foi o primeiro lugar em que floresceu um pensamento lacaniano fora da França", com a vantagem de que a leitura de Masotta parte de Freud para chegar a Lacan, ao contrário dos franceses, ``que estudam Lacan em primeiro lugar".
Com o golpe militar na Argentina, em 1976, muitos psicanalistas migraram para o Brasil, ajudando a consolidar o movimento no país.
O que importa, porém, é que, apesar de existir um consenso em torno de suas leituras de Freud, os lacanianos mantêm uma estrutura institucional fragmentada, lembrando um conjunto de seitas que rivalizam entre si na leitura mais autêntica, ``fundamental", dos textos sagrados.
A comparação com os fundamentalismo religioso pode ser cruel, mas o próprio Freud usava de um linguajar messiânico quando falava da necessidade de assegurar o futuro de sua obra.
Tempo lógico
O mais polêmico desses preceitos é certamente o ``tempo lógico" –uma técnica segundo a qual a duração da sessão é regulada por aquilo que é dito pelo analisando, e não por um período de tempo pré-estabelecido (como ocorre em outras vertentes).
``A formulação do tempo lógico tem relação com a noção freudiana da atemporalidade do inconsciente", justifica o psicanalista Alejandro Viviani.
Viviani, um argentino radicado em São Paulo e que não está ligado a nenhuma associação, afirma que, ``a partir da emergência de um efeito inconsciente no discurso do analisando, produz-se uma sequência, em que uma lógica se presentififica". Cabe ao analista interromper esta sequência, para que ela não se repita, mas produza um sentido, uma ``alteração da posição subjetiva do analisando".
Assim, continua Viviani, ``o tempo lógico permite fazer da interrupção da sessão uma intervenção do analista. Por que deixar essa decisão nas mãos do relógio?".
Teoricamente, portanto, uma sessão pode durar uma hora, mas também um minuto –o que com frequência provoca críticas severas dos detratores do lacanismo.
Uma insinuação comum é que os lacanianos se beneficiariam economicamente das sessões curtas e que suas agendas repletas não teriam lugar para um tempo lógico mais longo.
A esse respeito, Oscar Cesarotto admite que, de fato, há psicanalistas que caem nessa tentação –embora este seja um problema ético que não elimina a validade conceitual do tempo lógico.
Outro tema cercado de mistério é o ``passe". Proposto por Lacan em 1967 e abandonado após sua morte, o passe era uma espécie de teste para os candidatos a analista, que eram avaliados por um júri do qual Lacan era o presidente.
Hoje, a retomada do passe é discutida por diversas associações lacanianas. ``O maior o risco da psicanálise é se aproximar de um modelo religioso ou de uma hierarquia militar", comenta Cesarotto.
Como ele mesmo diz, porém, a psicanálise tem sempre a possibilidade de avaliar suas experiências e reconhecer a insistência num equívoco. Afinal, apesar das brincadeiras –ou preconceitos– que a identificam à igreja, a auto-análise não deixa de ser um contra-veneno para qualquer tendência à cristalização dogmática –garantindo a virulência anárquica do legado de Jacques Lacan.

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