São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Assassinatos são avisos do narcotráfico

JORGE CASTAÑEDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muito tempo se passará até que possamos saber quem realmente matou José Francisco Ruiz Massieu, o segundo político mexicano de primeiro escalão assassinado este ano. Se recordarmos a dança de versões e contraversões que se armou em torno do assassinato de Luis Donaldo Colosio, torna-se evidente que muitas das acusações e suposições podem desaparecer, para serem substituídas por outras igualmente inverossímeis.
Mas isso não nos impede de tentar tirar algumas conclusões da morte do secretário-geral do PRI, nem de especular sobre o que vem acontecendo no México desde maio de 1993, quando ocorreu o primeiro assassinato importante, o do cardeal Juan Jesús Posadas.
Se rechaçarmos a hipótese do louco solitário no caso Colosio, e mesmo que desvinculemos cada um dos assassinatos dos demais e aceitemos que não são produto de uma conspiração articulada, é claro que os meios tradicionais para dirimir controvérsias entre as elites mexicanas já não funcionam.
Nas últimas décadas, os estudiosos do sistema político mexicano e de sua lendária estabilidade vêm formulando duas teses: a primeira é de que a permanência do sistema derivava da criação de métodos para resolver de modo pacífico e ordenado as divergências surgidas entre as elites.
A segunda tese acompanhava a primeira: a ausência de divergências violentas entre as camadas superiores dependia da atenuação da violência e do descontentamento nas camadas inferiores, exigia melhoras constantes, embora paulatinas e modestas, das condições de vida das massas empobrecidas. As duas condições se cumpriram até o início dos anos 80.
O que a sequência de assassinatos ocorridos durante o mandato de Carlos Salinas revela é que à estagnação da elevação do nível de vida dos mexicanos (o PIB per capita no país é menor hoje do que em 1981) se somou o colapso dos mecanismos tradicionais de resolução de conflitos entre as elites.

Tanto faz
Daria no mesmo se a vítima do atentado no aeroporto de Guadalajara, em 1993, tivesse sido o traficante "Chapo Gusmán", o cardeal Posadas ou o núncio papal.
As hierarquias da igreja fazem parte da elite mexicana desde os primeiros dias da conquista do país; os narcotraficantes, pelo menos a partir do momento em que passaram a engrossar as fileiras dos empresários mais eficientes.
Daria no mesmo se Colosio tivesse sido morto por narcotraficantes de Tijuana, pelos desencantados partidários locais do PRI ou por ``dinossauros" do PRI nacional. Quaisquer que sejam as partes em conflito e a origem de seu antagonismo, elas preferiram recorrer às balas a negociar.
Tanto faz, também, que o deputado Manuel Mu¤oz Rocha e Abraham Rubio Canales (se é que foram eles) tenham mandado matar Ruiz Massieu sob ordens do narcotráfico, por ressentimentos pessoais ou porque se opunham a reformas democratizantes que o ele pensava em lançar.
A tão comentada desordem que Salinas está deixando consiste nisso: seu governo desmantelou ou abandonou muitos dos métodos tradicionais de solução de controvérsias entre as elites.
A corrupção não diminuiu, mas foi restrita a alguns privilegiados. A divisão de cargos, mordomias, empregos, bolsas de estudo, embaixadas e toda a parafernália do sistema se estreitou, enquanto a oferta de favores encolhia.
As consequências de se resolver disputas à força se abrandaram: inúmeros assassinos ficaram impunes. Na falta de recompensas para quem tinha bom comportamento e de castigos para quem se conduzia mal, não era preciso muita sagacidade para decidir como agir para acertar as contas com inimigo, rival ou concorrente.
Vácuo institucional
Salinas não se preocupou em construir algo novo e, especificamente, em implantar o único sistema viável no fim do século: uma democracia representativa autêntica e um estado de direito que garantisse justiça e segurança.
Talvez Muñoz Rocha não tivesse ordenado o assassinato de Ruiz Massieu, se tivesse tido a esperança de poder alcançar o cargo que queria por outra via.
Uma segunda reflexão é sobre as explicações possíveis para a concatenação dos fatos. Na falta de informações, tudo é especulação, mas algumas hipóteses são mais verossímeis do que outras.
Eu gostaria de propor uma, totalmente desprovida de fundamentos factuais, mas que talvez seja correta. Ela toma como ponto de partida o precedente colombiano.
Na Colômbia, a guerra do narcotráfico contra o Estado deslanchou a sério com o assassinato do ministro da Justiça Rodrigo Lara Bonilla, em abril de 1984. O motivo foi o temor dos cartéis de que começasse a ser aplicado o Tratado de Extradição firmado entre a Colômbia e os EUA em 1982. Em 1983, a extradição ainda não havia sido posta em prática.
A partir do ano seguinte e até a suspensão do tratado por emenda constitucional, em julho de 1991, os chefões do tráfico –os "extraditáveis"– travaram guerra aberta contra o Estado colombiano.
Eles o fizeram não tanto para defender seus negócios, que floresciam, mas para reverter uma medida que violava os entendimentos tradicionais entre narcotráfico e governo e colocava em perigo sua sobrevivência.
Foi só depois de dezenas de assassinatos de figuras públicas e depois de a guerra fazer milhares de vítimas que um presidente pró-americano, porém sensato, entendeu que era preferível negociar com o narcotráfico a combatê-lo. Quando o Congresso, instado por Cesar Gaviria, mudou a Constituição, Pablo Escobar se entregou, o Cartel de Medellín perdeu força e o de Cali se impôs, com seus usos e costumes mais suaves, seus filhos em Harvard e a prosperidade recuperada.

Três metas
É possível que o regime de Salinas tenha chegado a um acordo com o narcotráfico no início de seu mandato, assegurando três metas indispensáveis para ambos.
A primeira: que o narcotráfico trouxesse parte de seu dinheiro para o México, para ajudar o balanço de pagamentos. Recorde-se que a Colômbia foi o único país da América Latina que se sobreendividou durante a ``década perdida" dos 80, graças em parte à chamada ``janelinha sinistra" do Banco da República (o BC colombiano).
A segunda meta era que as atividades do narcotráfico não continuassem a perturbar as relações com os EUA. O perfil, as modalidades e efeitos do tráfico deveriam sujeitar-se a certas exigências.
A terceira era que o narcotráfico pudesse continuar suas atividades: as nomeações de Enrique Alvarez de Castillo, ex-governador de Jalisco e "cria" de um cartel, e de Javier Coello Trejo, ex-quase governador de Chiapas, ambos bem conhecidos do narcotráfico, talvez respondessem a esse requisito.
Em algum momento de 1992 –talvez no início do ano, quando Jorge Carpizo foi nomeado procurador-geral–, o narcotráfico teria concluído que o governo Salinas havia violado os acordos tácitos.
Não porque as autoridades tivessem decidido desferir um "golpe forte" contra o tráfico: todos sabem que a força, a presença, o consumo, a exportação e o tráfico de drogas são hoje maiores do que nunca. Mas o governo pode ter rompido entendimentos anteriores ao permitir aos EUA ingerência maior na luta contra o tráfico.
No final de 1990 começaram os sobrevôos de aviões P-3 norte-americanos; radares e balões com sensores foram instalados na fronteira; foi dada publicidade ao sequestro, por agentes americanos, do traficante Humberto Alvarez Machain (equivalente a uma extradição sem julgamento); o número de agentes da DEA no México aumentou e podem ter crescido as investigações sobre a ``lavagem" de dinheiro em bancos dos EUA.

`Trabalho sujo'
Havia uma razão para mudar o status quo anterior: o Nafta (Acordo Norte-Americano de Livre Comércio). Embora os governos Bush e Clinton jamais reconhecessem que o tratado incentivaria o comércio de drogas, os EUA sabiam que esse era o caso. Sem uma intensificação do combate ao tráfico que levasse ao deslocamento de suas fontes para outras latitudes, o Nafta ajudaria a fortalecer as vendas de drogas nos EUA.
Era necessário fazer aprovar o Nafta, mas o governo Salinas sabia dos riscos que correria numa guerra contra o narcotráfico. Daí sua possível decisão: aceitar a exigência dos americanos, mas sob a condição de que eles se encarregassem do ``trabalho sujo".
Quando o narcotráfico entendeu o que ocorria, teria decidido enviar ``recados em código" –que o governo compreendeu, mas outros setores, não. Os assassinatos seletivos, desestabilizadores, se prestam a várias interpretações, mas transmitem uma mensagem: ou se volta aos acordos anteriores, ou os crimes prosseguem.
O tráfico não é ``puro": ele compra, usa, manipula e se alia a setores políticos, empresariais e outros. Grupos ressentidos no interior do PRI podem ter sido usados nesses golpes; também é possível que nas altas esferas não exista diferença entre políticos transformados em traficantes e traficantes metidos a políticos.

JORGE G. CASTAÑEDA, 39, sociólogo e economista mexicano, é professor visitante da Universidade Princeton (EUA) e catedrático na Universidade Autônoma do México (Unam).

Tradução de Clara Allain

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