São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Areias de Portugal

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – No meio do quintal, ao lado da casa, havia a mangueira, enorme, de um de seus ramos meu pai pendurara um balanço que teve seus dias de glória até que meu irmão dele se despencou. Minha mãe iniciou campanha feroz e bem-sucedida: o balanço serviu de lenha numa fogueira de Santo Antônio.
Naqueles dias, Humberto de Campos publicara uma página de suas memórias, evocando o cajueiro de sua infância. Meu pai lera a crônica para mim. Recortei-a do jornal e quase a decorei. Pior: procurei imitar o menino que subia nos galhos mais altos e gritava: ``Assobe, assobe, gageiro, naquele topo real, para ver se tu avistas terras de Espanha, Otolina, areias de Portugal!"
Passei a subir nos galhos mais altos, onde descobri um nicho no meio das folhas verdes e perfumadas –como só as mangueiras sabem ter. E lá de cima eu também gritava aos ventos da Boca do Mato, garantindo que via terras de Espanha quando, na verdade, via apenas os tetos cor de moringa da vizinhança, ao longe a torre mais-que-branca da Matriz de Nossa Senhora da Guia e, depois, a formidável massa azulada do pico da Tijuca.
Pois ontem, tantos anos depois, sonhei com a mangueira dos dias antigos do passado. No sonho, ela surgia destacada, talvez mais alta e mais espetacular. E como na paisagem do sonho era quase noite, ela parecia iluminada por dentro, um pouco fosforecente, mas sem dúvida era a minha mangueira, intacta, esperando por mim.
Olhei-a bem e não foi difícil encontrar, em seus ramos mais altos, o nicho de folhas verdes e perfumadas –como só as mangueiras sabem ter. Lá estava ele, também, intacto, reconheci até mesmo o galho mais forte em que me segurava com maior confiança, deixando a outra mão livre para proteger os olhos do sol e dos ventos do mar largo. E de onde o menino, que nada vira do mundo até então, assombrado, avistava as terras de Espanha, as areias de Portugal.

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