São Paulo, domingo, 23 de outubro de 1994
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Mundo tão desigual

Aos olhos de qualquer estrangeiro, a desigualdade social do país é escandalosa
Noite paulistana, restaurante fervilhando, uísques e pratos em frenético vaivém. A mesa, pela animação, não deixaria ninguém suspeitar que estivesse circundada por suíços. E alemães. São da delegação de artistas para a Bienal Internacional de São Paulo.
À minha frente, uma loura divertida relata, ora em inglês, ora em francês, suas impressões sobre o Brasil. Em resumo: pasmo. Pasmo diante das dimensões da cidade, de sua vida feérica, da animação das pessoas e dos ambientes que não esperava encontrar. Pasmo, também, diante das diferenças extremadas que a metrópole expõe despudoradamente a seus habitantes –que parecem nada ver– e a seus visistantes –que vêem logo de cara.
É mesmo impressionante, nesta terra, aos olhos de qualquer estrangeiro, a convivência entre riqueza e miséria.
Já vai se tornando célebre a frase ``o Brasil não é um país subdesenvolvido, é um país injusto", do presidente eleito Fernando Henrique Cardoso. Na verdade é os dois, mas a ênfase tem sentido: aqui, o grau de desenvolvimento e de geração de riqueza na economia é vergonhosamente contrastante com a desigualdade social.
FHC tem dito que suspeita das estatísticas sobre a miséria no país. Não seriam 30 milhões. Talvez não, talvez sim, talvez mais, talvez menos. A minha estatística pessoal diz que as ruas de São Paulo estão tomadas por legiões de famélicos. Vejo-os diariamente sob os viadutos, sentados nas calçadas ou, semi-mortos, estirados no chão.
Não se pára em um sinal de trânsito sem que crianças venham em direção ao automóvel pedir ou vender alguma coisa. Fora dos sinais, um passeio pelo Anhangabaú e adjacências do centro antigo é ainda mais impressionante: meninos cheirando cola, andando nos pára-choques dos ônibus, correndo dos seguranças e da polícia.
E todos nos exercitamos diariamente na espinhosa e constrangedora técnica de fingir que não damos bola, que somos indiferentes àquilo tudo, que o mundo é assim mesmo, tão desigual.
Por que? Por que temos que conviver com isso? Afinal, quantas crianças abandonadas há na cidade, nas cidades, no país? Quanto dinheiro seria preciso para resolver o problema com um mínimo de decência? O de um programa nuclear como o de Angra? O de um túnel sob o rio Pinheiros? O dos dois juntos? E não valeria a pena? Quem já fez o levantamento? Quem tem um projeto sério?
Se o ``otimismo" que parece tomar o país com a eleição de Fernando Henrique Cardoso e a vigência do plano real não servir para encorajar o país a enfrentar esse tipo de questão, não servirá para nada.

Marcos Augusto Gonçalves é editor da Revista da Folha

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