São Paulo, sexta-feira, 4 de novembro de 1994
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Discussão sobre QI deve ser esquecida

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O filósofo australiano Peter Singer escreveu, há poucos anos, um livro interessantíssimo: "Ética Prática", traduzido recentemente pela editora Martins Fontes. Seus argumentos são de uma clareza enorme.
E o livro todo é muito audacioso. Defende não só o aborto, como também a eutanásia e o infanticídio em alguns casos. Ao mesmo tempo, considera dificilmente defensável o consumo de carne de vaca e de frango.
Trata-se de um estudo agradável de ler e extremamente persuasivo. O autor foi perseguido na Alemanha, na Áustria e na Suíça. Cursos sobre sua obra foram cancelados; palestras dele também.
Mas Peter Singer não tem nada de "politicamente incorreto". Ao contrário, suas idéias sobre aborto, eutanásia e igualdade racial em nada diferem das dos grupos que militam nesse sentido.
Uso seu livro para continuar a discussão em torno da suposta inferioridade intelectual dos negros, segundo a análise de Murray e Herrnstein no livro "The Bell Curve".
Peter Singer discute com um dos precursores da tese, Arthur Jensen. Resolve admitir, para fins de raciocínio, a hipótese de que os negros são geneticamente menos dotados intelectualmente do que os brancos.
Não se dá ao trabalho de discutir cientificamente a hipótese. Suponhamos, diz Singer, que seja verdadeira. Que consequências, do ponto de vista ético, poderemos tirar daí?
Nenhuma. Quem for racista e quiser discriminar os negros não tem porque se alegrar com conclusões a respeito do "QI mais baixo" ou mais alto deste ou daquele grupo racial. Singer dá três argumentos.
"A hipótese genética não significa que devemos diminuir os esforços no sentido de reduzir outras causas de desigualdade entre as pessoas. Nada é motivo para aceitar uma situação na qual as pessoas são impedidas, pelo seu ambiente, de fazer o melhor que podem."
O segundo argumento é de ordem lógica. Mesmo se admitirmos que, em média, os negros têm QI mais baixo, isso nada prova contra determinado indivíduo da raça negra –que pode ter um QI altíssimo; o preconceito que se tiver contra sua inteligência pode estar errado, isto é, revelar-se simples preconceito.
O terceiro argumento é mais óbvio e fundamental. Qualquer que seja a diferença de QI entre fulano e sicrano, isto não autoriza discriminações. O princípio da igualdade de direitos, diz Singer, não se fundamenta em nenhuma igualdade concreta entre as pessoas. Todos somos iguais em direitos, embora desiguais na realidade –mais altos, mais baixos, mais bonitos, mais feios, mais inteligentes, mais burros.
Singer defende que a igualdade de direitos se baseia não na igualdade de fato, mas na igualdade de interesses: o "interesse em evitar a dor, desenvolver as próprias aptidões, satisfazer as necessidades básicas de alimento e abrigo, ser livre não é afetado por diferenças de inteligência."
Fosse o contrário, e Singer cita o revolucionário Thomas Jefferson contra a escravidão, todos nós deveríamos ser escravos de sir Isaac Newton.
Mas é claro que os autores de "The Bell Curve", ainda que considerem os negros inferiores do ponto de vista intelectual, não estão propondo a volta à escravidão. Quais as consequências políticas que eles tiram da tese?
Nesse ponto, Murray e Herrnstein são infernais. Dizem que as conclusões de seu estudo são neutras do ponto de vista da discriminação. Pois não faz diferença se alguém é discriminado, enquanto negro, devido a causas genéticas ou a causas relacionadas ao ambiente socioeconômico.
O que eles afirmam é que não ajuda nada pensar que os negros vão mal em testes de QI devido a problemas sociais. Primeiro, porque isto não é verdade. Segundo, porque o fato de essas diferenças serem supostamente sociais não modificaria em nada a situação. Já que negros e brancos da mesma classe, negros e brancos de uma boa faixa de renda, continuam apresentando sérias diferenças de QI, melhorar a vida econômica dos negros ou seu acesso à escola não diminuirá a desigualdade.
Vamos entrando nos aspectos mais sinistros e errados do pensamento de Murray e Herrnstein. Há conclusões extremas a partir do raciocínio deles, que nem foram tiradas. Por exemplo, se inteligência é questão genética, se os genes se transmitem, para se ter uma população mais inteligente seria bom diminuir a taxa de reprodução da raça negra...
O raciocínio é simplesmente odioso. Cedendo ao "politicamente correto", todavia, Murray e Herrnstein fazem outro tipo de raciocínio.
Dizem que valorizar a inteligência não é tão importante assim. Que outras raças, ou outras culturas, podem ter seus valores próprios –e que os negros não fazem mal ao defender características "negras", não ligadas necessariamente à boa nota no QI.
É um pouco o que nós, brasileiros, fazemos quando louvamos nossa própria indisciplina. Faltaria aos negros, parecem dizer Murray e Herrnstein, maior consciência da superioridade que eles têm em campos outros que não os da inteligência.
No fundo, toda esta polêmica se desenvolve numa sociedade atravessada por dois problemas: o sistema educacional baseado em testes de QI e o sistema cultural baseado na predominância branca e protestante. O negócio todo é uma loucura e leva racistas e anti-racistas, negros e brancos, liberais e conservadores a argumentações contraditórias.
Basta ver o absurdo sistema de "quotas" raciais vigentes nas universidades americanas. Criou-se uma reserva de mercado para negros, mulheres, latino-americanos etc.
Imagine se inventassem um sistema de quotas na seleção de basquete americana. Um terço, ou mais, dos convocados teria de ser branco, por questão de justiça étnica... Ora bolas.
Mas o problema vai mais longe. Quem disse que um bom QI garante, por exemplo, a formação de bons médicos, de bons engenheiros?
Às vezes, um médico pode não ter alto QI, mas mesmo assim ser bom médico, no que tenha de intuição pessoal, de simpatia humana, de dedicação e de bondade. De experiência social, também. Um médico negro pode ter passado por experiências de "contato inter-racial" que o habilitem muito a conviver com pacientes de todas as cores e credos.
Voltamos, assim, a questionar a eficácia dos testes de QI. Em cada profissão, em cada escola, em cada seleção em que os testes de QI são utilizados, procura-se uma coisa só, a capacidade de raciocínio e de aprendizado; a disciplina e atenção, talvez.
Mas os testes para se detectar um "bom médico" antes do curso de medicina deveriam preocupar-se com outras coisas. Deveriam testar vocação, humanidade etc.
Não se fazem, creio, testes assim. Por uma razão muito simples: é que a vida profissional de cada candidato, seu desempenho na escola etc. já são uma espécie de teste. O teste maior é o da experiência. Teste muito custoso, dirão alguns. Pois, se pudéssemos selecionar melhor os futuros médicos, eles errariam menos, e cada fracasso vocacional custa muito à sociedade.
Como ficamos? Ficamos numa certa irrelevância dos testes de QI; no absurdo do sistema de quotas raciais; na injustiça que há em discriminar qualquer pessoa pela cor da pele.
Ou seja: Murray e Herrnstein não querem, como cientistas, discriminar ninguém pela cor da pele. Dizem apenas que cor da pele está relacionada com QI. Mas cabe a nós esquecer, em nome da humanidade e da inteligência, os dois fatores em jogo, cor da pele e QI. Se formos mais lúcidos a respeito dessas duas coisas, o livro "The Bell Curve" deixará de ter qualquer importância.
P.S. - Estou tirando férias. Até dezembro.

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