São Paulo, sexta-feira, 4 de novembro de 1994
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Até São Mateus cederia ao sabor do foie gras

HAMILTON MELLÃO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

São Mateus é contra a aventura do comer, pois, como ele mesmo disse em seu Evangelho: "Não compreendeis que tudo que entra pela boca desce para o ventre e depois é lançado em lugar escuso? Mas o que sai da boca vem do coração."
Certamente São Mateus não experimentou foie gras, mas tenho certeza que, se um dia ele comesse, seria tentado a fazer um adendo do tipo "pensando bem...".
Foie gras pode ser traduzido como fígado gorduroso. É obtido de gansos ou patos geneticamente adaptados há séculos e que, com uma superalimentação, têm o seu fígado aumentado em até dez vezes.
Ao contrário do que pensa o imaginário popular, não é usado nenhum tipo de álcool em sua alimentação e nem esse aumento do fígado é proveniente de algum mal. O que acontece é que estes animais possuem uma predisposição para armazenar gordura em seus fígados, já que seus antepassados necessitavam dela para suas longas viagens migratórias.
Os primeiros a perceber o exponencial desta iguaria foram os egípcios, que a reservavam para o pasto dos nobres. Os judeus, ao saírem daquele país, levaram com eles as técnicas, assim como as receitas, e foram durante muitos séculos os detentores de tal conhecimento.
O romano Plínio, o Velho, descreve como a maior iguaria do mundo, julgando-a afrodisíaca. Essa tradição perdura e chega até Giacomo Casanova, que em suas "Memórias" garante ser o foie gras a razão da sua virilidade. Daí por diante, sua trajetória segue inabalável, sempre como um alimento superlativo e aristocrático.
Hoje sabemos que os judeus os alimentavam com uma pasta de figos silvestres, mas com a chegada do milho na Europa fica provado que este era o alimento ideal para os gansos e os patos.
Usando uma técnica artesanal que nada mudou até hoje, os criadores cozem o milho em água e sal, juntam um pouco de gordura para torná-lo mais digestivo e, com o auxílio de um funil, vão fazendo massagens nos pescoços das aves, para que elas absorvam o alimento.
O fígado do ganso tem um sabor mais adocicado e sutil; o de pato tem um gosto mais pronunciado e agreste. Os dois têm os seus defensores.
Em São Paulo, é possível encontrar o de pato fresco nas lojas Wessel, pois existe uma pequena criação nacional, e o Chile tem tradição na sua produção. O de ganso ainda não é produzido em escala comercial aqui, e os patês e terrinas encontrados nas lojas de goumandises e no free shop não representam a qualidade das grandes terrinas produzidas artesanalmente na França, na Hungria e em Israel.
Para fazer o foie gras de canard (fígado gordo de pato), deixe-o descongelar naturalmente na geladeira. Aqueça bem uma frigideira –de preferência de ferro– e corte a carne no sentido vertical, na espessura de 2 cm. Não coloque óleo ou azeite –somente o fígado– e conte até sete, tomando o cuidado para não furá-lo.
Repita a operação do outro lado. Acrescente sal e pimenta do reino moída na hora. Se gostar, algumas gotas de vinagre balsâmico. Este escalope deverá ficar crocante por fora e macio por dentro.
Para acompanhá-lo, um purê de uma fruta leve, como figos ou morangos. Para beber, os puristas pedem o superlativo Chateaux d'Yquen, mas é possível ter prazer com um Montrachet ou um Merseault.
Se você não quiser confeccioná-lo, um bom lugar para sua degustação é o restaurante Roanne, onde o chef Bassoleil trabalha como poucos tão nobre produto.
Ao colocar o primeiro bocado na boca, um gourmet sentirá como um repicar de sinos na sua cabeça, a sua língua será tomada por milhares de sensações organolépticas e, fechando os olhos, é fácil chegar ao êxtase.
Vocês podem achar que é exagero, mas só provando para entender o que disse o grande Curnonsky: "O foie gras é a quintessência de todos os aromas e sabores, que resumem numa só criação toda a certeza da existência de Deus."

ROANNE: r. Henrique Martins, 631, tel. 887-4516
WESSEL: av. Brigadeiro Faria Lima, 1.092, tel. 210-3310

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