São Paulo, sexta-feira, 4 de novembro de 1994
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Kieslowski fecha trilogia com otimismo

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Filme: A Fraternidade É Vermelha
Direção: Krzystof Kieslowski
Elenco: Jean-Louis Trintignant, Irène Jacob
Onde: Top Cine, Arouche A e Cinearte 1

Com "A Fraternidade É Vermelha" (Trois Couleurs: Rouge), o polonês Krzystof Kieslowski fecha a sua trilogia existencial inspirada pelas divisas da República francesa. Como as partes anteriores, pode ser vista e entendida autonomamente, pois entre elas há correspondências, mas não continuidade. Sua fruição completa, porém, exige o conhecimento prévio do azul da fraternidade e do branco da igualdade. Só as conhecendo é possível captar toda a ironia absurda do naufrágio que, no final de "Rouge", embaralha os destinos dos protagonistas dos três filmes.
Agora se sabe: os personagens de Juliette Binoche ("Bleu"), Julie Delpy e Zbigniew Zamachowski ("Rouge") quase morreram afogados ao atravessar de barco o canal da Mancha durante uma borrasca. Também a bordo, Valentina (Irène Jacob), a heroína de "Rouge", sem dúvida o melhor segmento da trilogia, o que talvez não queira dizer muita coisa para quem, como eu, embirrou com as afetações "artísticas" do primeiro e não morreu de amores pelo segundo –uma patética piada polonesa surpreendentemente narrada com a mesma simplicidade dos primeiros filmes do autor.
Mais elaborado e transparente que seus antecessores, "Rouge" leva ainda a vantagem de lidar com o mais cálido (e exequível) dos sentimentos, daí sua cor simbólica, o veemente vermelho, a tonalidade da compaixão, onipresente (no cartaz de um café, em toalhas, capas de livro, jipes e fundo de fotografias), ao contrário do que ocorria com o azul, em "Bleu", e o branco, em "Blanc" (a certa altura também identificado como a cor do orgasmo –eu não disse que o filme era uma piada?)
Síntese dos dois primeiros, "Rouge" amplia a pesquisa cromática de "Bleu" e o gosto por maquinações de "Blanc". A exemplo daqueles, parte de um objeto aparentemente útil cujos perigos ocultos não tardam a se revelar. Em "Bleu" era um carro; em "Blanc", uma mala; em "Rouge", é um telefone. O cavo ceticismo de Kieslowski não podia ver mesmo com bons olhos os progressos da tecnologia. Para ele, o carro é um veículo mortífero, a mala, um estorvo e um estigma, e o telefone, um obstáculo à comunicação.
Em "Bleu", Binoche perdia o marido; em "Blanc", Zamachowski perdia a mulher; em "Rouge", Jean-Louis Trintignant reencontra a jovem que um dia amou. Kieslowski fecha o ciclo em clave otimista. Ampliando as dimensões geográficas de sua reflexão moral, metafísica e estética, trocou a França e a Polônia pela Suíça, aquele país de folhinha onde a solidão é quase uma calamidade pública.
Genebra é rica e tranquila, mas também insular e tediosa. É nela que vivem os personagens de "Rouge", unidos por uma espécie de telepatia emocional e envolvidos por um estranho relacionamento, forte o bastante para libertar uma modelo (Valentina, homenagem a Guido Crepax?) do artifício da imagem e um juiz misantropo (Trintignant) de suas rabujices niilistas. Vermelha também é a cor da regeneração.
Com súbitas mudanças de perspectiva e sutis deslocamentos no tempo sem o corriqueiro recurso do "flashback", Kieslowski narra sua história entre as fronteiras do presente e do futuro do pretérito, fazendo de Auguste (o vizinho de Valentina) uma reencarnação do personagem vivido por Trintignant. Demiúrgico alcoviteiro do comportamento humano, na medida em que se recusa a julgar os outros, o personagem de Trintignant muito se assemelha ao próprio Kieslowski, também um poço de severidade, descrença e isolacionismo.

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