São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Direito tem dois modos de ver o delator

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Esta coluna é escrita a contar de um "gancho" (assunto que puxa outro) colhido em lúcida anotação do ombudsman a respeito do verbo delatar. Nascida gramatical, a questão tem cores jurídicas fortíssimas. Todo cidadão prestante tem o dever de informar a autoridade competente sobre qualquer crime de que tenha conhecimento. A ocultação consciente de um delito é anti-social. No âmbito da administração pública tal denúncia é dever funcional inafastável. Reconheço que os últimos anos assinalaram grave distorção desse dever. Privilegiaram a denúncia a qualquer preço, sem maior preocupação com a honra dos acusados. Criou-se irresistível corrente sócio-psicológica danosa para o direito: tudo o que se divulgou de mau, de negativo (geralmente com escândalo) passou a ser acreditado, diversamente do que se divulgou (com muita discrição) de bom ou do que se retificou (com muitíssima discrição).
Avaliar o que a sociedade pensa da contraposição entre o denuncismo fácil e a justa indicação dos delinquentes à opinião pública e às autoridades é complicado. Parece possível, porém, lançar luz sobre o assunto, lembrando os vários Estados em que não foram eleitos candidatos cujo principal atrativo consistia nas denúncias que haviam feito. Também recordo a secretária que traiu o nome de sua profissão (secretário é aquele que deve manter secretos os assuntos a seu cargo) e caiu no merecido esquecimento.
Sob outro ângulo, as figuras que pareciam luminares da pureza nas escandalosas Comissões Parlamentares de Inquérito não encontraram apoio popular que as suportasse. Algumas delas, aliás, receberam o mesmo tratamento enquanto acusadas que, enquanto algozes, deram a seus adversários. Parecer herói quando se está do lado da coronha é mais fácil do que quando se está do lado da alça de mira.
As duas realidades retratadas (as muitas denúncias e a reação da sociedade) sugerem que o povo, na sua intensa sabedoria, apóia a revelação do mau comportamento dos delinquentes, mas repudia o delator, o alcaguete fariseu e falso puritano. Para o direito é bom que a verdade histórica possa corrigir distorções que se agravam nestes tempos de comunicação social instantânea, mais sérias para a honra e para a imagem dos atingidos.
O que tem tudo isso com o "gancho" referido de início? Na coluna do ombudsman este referiu o emprego depreciativo do verbo "delatar", quanto ao chefe de uma das torcidas futebolísticas, depois da tortura a dois jovens, em Santo André. Embora aquele verbo tenha o significado de denunciar comportamentos irregulares, é indiscutível sua ligação depreciativa com a informação maliciosa ou traidora. Todavia, no caso do futebol o chefe da torcida uniformizada não delatou, com o sentido desprimoroso referido, mas forneceu a lista dos seus sócios naquela cidade.
Distingo a boa denúncia da "delação". No serviço militar é questão de honra jamais "delatar" um companheiro. Na universidade esse comportamento também constitui a regra. O delator fica sempre malvisto. O meio termo entre as duas atitudes leva, com frequência, a verdadeiros fios de navalha na separação das condutas. Há, porém, a convicção geral segundo a qual o "dedo-duro", o "delator" (na acepção negativa) pode ter suas denúncias acolhidas, mas é desprezado até por quem as recebe. O direito aplicado tem desses paradoxos.

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