São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Os últimos continuam sendo os primeiros

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na semana passada, em Santiago do Chile, consegui tomar distância das múltiplas desgraças que assolam o Rio de Janeiro e fazer uma análise serena do Plano Real.
Fui ajudada pela obrigação de fazer duas exposições para um público seleto de "experts" da Cepal e para o presidente do Banco Central do Chile. Trata-se de gente que conhece as experiências de estabilização da América Latina.
A perplexidade que reinou foi em relação à política cambial e monetária. As perguntas mais difíceis de responder foram:
1 - Por que deixaram o real sobrevalorizar-se nominalmente em 15% em menos de dois meses, em cima de uma inflação residual de cerca de 12%?
2 - Levando em conta o repique da inflação em outubro para cerca de 3%, se esta se mantiver, a sobrevalorização do real entre 30 de junho e 30 de dezembro pode alcançar cerca de 40%. Esta é a mais rápida e brutal sobrevalorização de todas as experiências recentes de estabilização que escolheram o câmbio como "âncora". Por acaso, o objetivo é provocar uma abertura externa com déficit comercial, em tempo recorde para os padrões latino-americanos, que levaram em média mais de três anos para obter esse resultado?
3 - Por que puseram uma meta monetária tão estreita, sabendo que não detinham o controle do crédito interno e muito menos o do crédito externo? A monetização brusca, os vasos comunicantes do mercado financeiro e a desregulação da conta de capital do balanço de pagamentos não iriam anular qualquer possibilidade de política monetária ativa e eficaz?
4 - As expectativas de volta da inflação não tenderiam a restabelecer a reindexação voluntária?
Tive dificuldade de responder às perguntas e algumas só pude fazê-lo com meras hipóteses.
Em relação às medidas corretivas que acabaram de ser anunciadas, ocorreram as inevitáveis comparações com o "invernadero chileno" e as dúvidas sobre se o IOF seria um instrumento eficaz para regular a entrada de capitais.
O simples manejo para cima do IOF não poderia ser repassado à taxa de arbitragem dos agentes financeiros que operam em dólar, seguindo-se um aumento do spread bancário e uma elevação da taxa de juros nominal interna, que apenas sancionaria o aumento das expectativas inflacionárias? Os fatos da semana passada parecem confirmar a pergunta.
Sobre a dinâmica futura do plano, podemos pensar em duas fases. Na primeira, a sobrevalorização continuará como mecanismo de abertura radical da economia. Dado o grande fechamento histórico, parece querer-se chegar, com um atraso de um a dois anos, a um déficit comercial. Este seria julgado essencial para que a "absorção de recursos externos" seja compatível macroeconomicamente com o superávit da conta de capitais.
Trata-se de uma hipótese convencional, defendida pela maioria dos economistas do Consenso de Washington (ver, por exemplo, o artigo de Arminio Fraga na "Gazeta Mercantil" de 14/10/94). Esta política foi adotada pelo plano de estabilização do México, com a diferença de que a sobrevalorização foi mais lenta (dado o mecanismo de deslizamento do peso em relação ao dólar).
No México, a destruição da indústria tradicional pela concorrência externa (decorrente da abertura tarifária e da sobrevalorização cambial) foi em parte compensada pelo crescimento fortíssimo da indústria "maquilladora" da fronteira que transaciona diretamente em dólar com os EUA.
O processo de privatização acelerou a entrada de capitais (e a sobrevalorização cambial), a qual continuou depois acompanhando o ciclo de negócios e a demanda por crédito do setor privado.
A entrada de capitais, para ser esterilizada monetariamente, teve de ser absorvida pelo crescimento da dívida pública, o que por sua vez requereu um superávit fiscal primário crescente.
Há mais de um ano, o México encontra-se numa situação de desequilíbrio potencial permanente no balanço de transações correntes e no orçamento fiscal, que foi compensado mais recentemente por um endividamento crescente do setor público nas praças financeiras internacionais, em particular na Bolsa de Nova York.
As expectativas de entrada e saída de capital financeiro são dificilmente manejáveis em condições de desequilíbrio macroeconômico crescente e de especulação na Bolsa de Valores. Assim, no México, mais do que em qualquer parte da América Latina, o "rabo financeiro especulativo balança continuamente o cachorro".
Estruturalmente, o ciclo de negócios mexicano depende cada vez mais do ciclo de negócios dos EUA, já que o Nafta, ao contrário do Mercosul, não é um acordo de livre comércio, mas sim um acordo de proteção de investimentos de origem americana.
Isso dá uma certa solidariedade ao pacto das elites mexicanas, ficando com o governo do México a tarefa de tentar sentar em cima das flutuações da conjuntura e conter as pressões sociais através das chamadas "políticas sociais compensatórias" ou, de outro modo, mais violento, conforme a natureza e a localização dos conflitos.
Portanto, a experiência do maior país latino-americano do Norte indica que a "mexicanização" da economia ou da política brasileira não são de nenhum modo recomendáveis para o Brasil.
No caso do Brasil, passado um certo estágio de "reestruturação microeconômica", podemos passar a uma segunda fase, onde as pressões dos exportadores manufatureiros, que não aguentam a concorrência, induzam expectativas de desvalorização.
Essas expectativas serão agravadas se a recente elevação de preços das commodities (que representam 50% das exportações) e a tendência à desvalorização do dólar não se mantiverem.
Como as importações reagem lentamente enquanto não houver um crescimento interno suficiente para reativar a demanda interna de insumos e bens de capital para investimento, as pressões por desvalorização cambial e reindexação podem se tornar insustentáveis, desestabilizando o plano.
Para dar nova força ao plano seria preciso uma nova onda de privatizações, o que estimularia a entrada de capitais e sustentaria a sobrevalorização cambial. Desta vez, seriam provavelmente envolvidos os setores estratégicos protegidos pela Constituição e recomendado o estabelecimento de uma nova paridade fixa entre o real e o dólar, com plena conversibilidade e depósitos em dólar, desembocando em alguma versão do Plano Cavallo.
Dada a dimensão do Brasil, o seu maior grau de industrialização e os seus gigantescos bolsões de pobreza, os resultados desse tipo de políticas seriam piores que os verificados em outras experiências de liberalização latino-americanas.
Mas o BC (além de ter de jogar o jogo de "gato e rato", em que os operadores da mesa de câmbio conseguem várias vezes ganhar o jogo derrotando um ou outro especulador mais afoito) deveria ter uma política cambial de longo prazo mais coerente com metas mais lentas e coordenadas de abertura econômica e absorção de capitais, sem o que não haverá política monetária nem política fiscal compensatória possíveis.
Os mentores da política econômica brasileira devem conhecer a experiência internacional recente em matéria das dificuldades e contradições que derivam da opção por uma política de câmbio fixo ou flutuante que leva continuamente à sobrevalorização, usando-se o câmbio nominal como âncora antiinflacionária permanente.
Restou-me, assim, uma possível resposta sobre o porquê da política tão agressiva de sobrevalorização cambial, acompanhada de redução de tarifa externa e antecipação das regras do Mercosul: a equipe quer aproveitar a lua-de-mel da eleição e o prestígio do novo presidente para dar um tratamento de choque em matéria de "política de abertura". Tratar-se-ia de malhar o ferro enquanto está quente para evitar a organização e arregimentação de interesses a favor de uma "abertura lenta, gradual e segura".
Como é característica da história das elites, tudo será feito em nome da estabilidade duradoura, da modernização e da eficiência (com as devidas salvaguardas "microeconômicas" para os agentes mais relevantes). O pressuposto é que o povo pagará qualquer preço para ter estabilidade de preços, mesmo à custa do desemprego e da anomia social.
Assim, (como ocorreu com a industrialização), o último país a se ajustar ao modelo vigente da nova "ordem" continental seria o primeiro em termos de impacto nos destinos da "modernização conservadora" latino-americana.

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