São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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As falsas belezas

ESPECIAL PARA A FOLHA

Oliviero Toscani, 52, fotógrafo, diretor de arte da Benetton há 12 anos, chegou em Gaza, no dia 17 de outubro, vindo da Coréia, onde honrara um convite da Universidade de Seul. Em Gaza, passou três dias de trabalho, com uma equipe reduzida, para fotografar as imagens destinadas ao próximo catálogo de Benetton.
Ele não levou consigo nenhum modelo profissional, só quis fotografar homens e mulheres comuns encontrados na rua ou adolescentes em suas escolas. Quase todos aceitaram posar rapidamente para ele, vestindo uma roupa, às vezes apenas um detalhe de Benetton. Como todos diziam, tomados em uma tragédia da história, estavam satisfeitos de mostrar ao mundo que são "gente" como todos os outros, como todos nós. Toscani saiu de Gaza para o Japão, respondendo a outro convite universitário.
Sua vontade política e cultural de transformar a comunicação moderna é explícita. Toscani ensina na Faculdade de Sociologia da Universidade Sapientia, de Roma. Também promove o projeto da Fabbrica, uma antiga vila do Palladio, perto de Treviso, transformada em escola para pensar o futuro e sua comunicação. A Fabbrica é financiada pelo orçamento publicitário de Benetton, que também edita "Colors", revista publicada em seis línguas (680 mil cópias) e destinada aos adolescentes de todas as idades, "para ver e entender o que é diferente".
Recentemente, em 1992, Toscani voltou à reportagem. Foi para a Somália, poucos meses antes da chegada da força da ONU, ficou em um campo de refugiados onde a morte matava 800 pessoas por dia, fotografou para a revista "Epoca" e para a Agência de Imprensa Neri e destinou o dinheiro provindo de suas fotos, amplamente publicadas no mundo inteiro, aos "Médecins Sans Frontières" (Médicos sem Fronteiras).
Estes dados deveriam ser lembrados antes de qualquer discussão sobre a própria produção publicitária de Toscani. Sabe-se que seus anúncios para Benetton suscitaram e seguem suscitando vivas polêmicas. Em alguns casos, em vários países, houve jornais para recusar sua publicação: ficaram famosas as polêmicas, por exemplo, em torno da imagem do jovem morrendo de Aids, dos corpos carimbados HIV positivo, ou ainda da (autêntica) camiseta empapada de sangue de um jovem bósnio morto em Sarajevo.
As imagens, convenhamos, não são mais escabrosas do que as que propõem a atualidade e mesmo, às vezes, a produção cultural. É o deslocamento das imagens e mensagens para a comunicação publicitária que parece produzir escândalo. Mas por que isto provoca tanto? É o uso cínico de tragédias humanas para promover produtos Benetton, como pretendem às vezes os críticos de Toscani? Ou então a crise que as escolhas de Toscani produzem na espécie de falso espelho encantado da bruxa de Branca de Neve, mundo falso que a publicidade nos propõe como modelo?
Como Toscani salienta, no mundo desenvolvido o orçamento publicitário está perto do dobro daquele da instrução pública. Ou seja, a publicidade tornou-se, em nossa época, um modo dominante de comunicação e, portanto, um elemento decisivo da cultura que nos molda.

Folha - Há fundamentalmente dois estilos publicitários: apresentar os produtos ou então sugerir uma identificação com a imagem de quem –modelo ou celebridade que seja– aparece fazendo uso do produto. Você manifesta geralmente pouca simpatia para com a publicidade e os publicitários, embora ocupe há 12 anos a função de diretor de arte da Benetton. De fato, sua publicidade, pois apesar de tudo também é publicidade, não parece se inspirar em nenhum destes dois estilos.
Oliviero Toscani - Certo, meu trabalho também é publicidade, mas não se inspira nestes dois estilos que são o exemplo mesmo da falta de criatividade. A publicidade geralmente nos diz como devemos consumir a vida. Deveria nos dizer como criá-la; a criação é muito diferente do consumo. É possível criar a vida, fazer escolhas. Não está escrito em lugar nenhum que a publicidade tenha que ser a merda que é. É só um lugar-comum, um caminho fácil para gastar o dinheiro dos clientes. É normal: quem faz linguiça não sabe fazer comunicação. Por isso a contribuição da publicidade para arte equivale à contribuição da musak (música para elevadores) para a música. Como é que eles conseguem se fazer chamar diretores criativos quando sua criatividade é menos que zero? Não sei.
Folha - Provavelmente "eles" estão convencidos do que as pessoas querem e procuram só modelos identificatórios, imagens com as quais possam se parecer. E podem constatar que não só a publicidade, mas a produção cultural em geral vende bem sobretudo este tipo de imagens.
Toscani - É uma mentalidade paternalista: "isso é o que querem e isso eu lhes dou". As mensagens habituais da publicidade são dignas de um novo processo de Nuremberg. Continuam nos dizendo que todas as mães são loiras, que todas as famílias são felizes, que nosso carro representa nosso poder e nossa potência até física e sexual, que você é o que você consome, e será respeitado pelo que você consome, que o creme de merda que você coloca na cara espalha perfeitamente a beleza que você poderia vir a ser se copiasse Isabella Rossellini. Me pergunto quando vamos acordar. Eu estou escandalizado.
Folha - Desde o começo de seu trabalho com Benetton, há 12 anos atrás, havia uma mensagem...
Toscani - Qualquer imagem publicitária, mesmo a mais idiota, tem uma significação sociopolítica. Não há imagens que não tenham uma mensagem, uma significação. As imagens que projetam imagens de supermodelos, de supermentiras são de qualquer forma imagens sociopolíticas. Minhas imagens não são diferentes deste ponto de vista. Só que elas andam com a realidade do mundo e as outras andam com as mentiras.
Folha - A sua mensagem era "United Colors of Benetton".
Toscani - Sim, a problemática das diferentes raças. Desde sempre, eu procuro as diferenças, a aceitação do diverso.
Folha - E a sua integração também?
Toscani - Não propriamente, me interessa sua aceitação, porque os outros são diferentes, e cada um é diferente para os outros. Esta era a idéia. United Colors era um "copy"; em 1990, eu inseri o "copy" no próprio logotipo da empresa. Ninguém, aliás, se deu conta, mas é um fato significativo.
Folha - Esta mensagem que se tornou o logotipo da Benetton é a constante de seu trabalho. Até as imagens escabrosas dos últimos anos (por exemplo, o jovem aidético morrendo, os corpos marcados por "HIV positivo") parecem maneiras de mostrar ou lembrar que situações excluídas, afastadas da humanidade –a morte, a doença contagiosa– de fato fazem parte dela.
Toscani - São realidades humanas.
Folha - Encontrei um industrial italiano que me disse que, no começo, gostava muito da idéia de United Colors, mas que, depois, estas coisas todas, a Aids, os preservativos etc, o deixaram indignado. É uma crítica frequente ao seu trabalho, ou seja, à idéia de que não se deve tocar em certos temas, como se fossem sagrados. Particularmente, usar destas imagens na publicidade seria, como ele disse, aproveitar da desgraça dos outros para promover um produto.
Toscani - Há os fundamentalistas islâmicos da publicidade. Eles não querem que esta religião seja tratada de uma forma diferente daquela que eles consideram certa. Francamente, não acredito que eu esteja utilizando a morte para vender mais pulôvers. Até porque não há como utilizar a morte para vender, só posso me dar conta que ela existe.

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