São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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Tradução capta desenho sintático da "Ilíada"

LUIZ ALBERTO M. CABRAL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há duas maneiras básicas de se traduzir a "Ilíada": "uma consiste na retenção de todas as singularidades verbais do original; outra, na severa eliminação dos detalhes que distraem ou detêm, na subordinação do sempre irregular Homero de cada verso ao Homero essencial ou convencional" (1).
Em "A Ira de Aquiles", Haroldo de Campos e Trajano Vieira optaram pela primeira e defrontaram-se com o complexo dialeto poético de uma língua jamais empregada na conversação diária; rica de sinônimos, formas alternantes e vocabulário audacioso, provenientes das mais diversas fontes (2).
A qualidade primorosa da tradução se deve à conjugação da fina sensibilidade poética de Haroldo ao eficiente trabalho de pesquisa do idioma grego por Trajano. Evidência disso é a solução poética encontrada para o verso 50, que parte diretamente do resgate semântico do termo original: o adjetivo "argós" (aplicado a "cães"), que em grego significa "brilhante", "branco" e, por extensão, dá idéia de luminosidade, "rápido", "ágil" (3), é vertido na bela imagem "rápida prata, os cães".
Ao lado das soluções poéticas e precisas, que imperam na tradução, há, porém, algumas imprecisões, como a do verso 141, em que "hála dŒan" (literalmente "mar divino") foi vertida por "mar salino"; no verso 532, "hála BatheŒan" ("mar profundo") por, novamente, "mar salino". Ainda com referência a "mar", a solução do verso 350, "mar salino-cinza" (por "halós poliês") pode até ser precisa e consoante aos modernos estudos homéricos, mas é pouco poética; como também o é a solução do verso 336 –literalmente, "Ele (Agamêmnon) nos envia por causa de Briseide", por "a culpa é de Agamêmnon, guloso de Briseida".
O caráter pioneiro desta tradução consiste no obstinado afã em reproduzir o "desenho sintático" do original, valendo-se de recursos até então inexplorados nas duas consagradas traduções brasileiras (de Odorico Mendes, pela editora Atena, e de Carlos Alberto Nunes, pela Ediouro), como o "enjambement não periódico ou progressivo" (versos 4-5, 14-15, 41-42), a utilização precisa da "epanáfora" (versos 436-9), o emprego da "tmese" (verso 579) e a perspicaz solução para o "dual" do verso 200 ("olhos terríveis brilham"), que mantém a ambiguidade e intensifica o efeito expressivo.
Nesse empenho ambicioso de "recriar a poesia da gramática" do canto 1 da "Ilíada", foi relevado o recurso da "personificação" e seu emprego dotou as imagens poéticas de uma das principais características do pensamento arcaico: o aspecto concreto da linguagem. O melhor exemplo é o verso 223 "fala negra" ("atarteroŒs epéesein"), que nos leva a pensar na "palavra vermelha de Hõlderlin" (4). Exato procedimento poderia, no entanto, ter sido aplicado a outras passagens, como a do verso 24, literalmente "antes que a velhice lhe alcance" (em que "velhice" é agente), traduzida por "até que fique velha" (passivo).
Mas se no plano sintático a logopéia seguiu de perto as sinuosidades do original, no plano semântico nem sempre o foi possível (por exemplo, no verso 193, a difícil expressão "katà phréna kaì katà thymón" é vertida pelo abstrato "no íntimo"). Isso se deve ao mencionado aspecto das línguas arcaicas e a ocorrência de formas específicas, sem equivalentes nas língua modernas. Para dar só um exemplo, o termo que as traduções vertem por "força" corresponde, em Homero, a nada menos que oito palavras distintas, cada uma dotada de significado vital e sensível, bem longe de significar "força" no sentido abstrato (5).
Mesmo assim, soluções originais, sempre poéticas, foram encontradas para os problemáticos epítetos homéricos. Como exemplos temos o verso 456, em que o adjetivo "aeikéa" ("sem semelhante") é aplicado a "peste" ("loigón") e vertido por "mal sem cara, praga"; e o verso 462, em que "aíthopa" ("de aspecto brilhante"; de "aithó", iluminar, queimar, e "Óps", olho, rosto) é aplicado a "vinho" ("oŒnon") e traduzido por "vinho rosto-de-fogo"; evidências de um trabalho acurado em todos os planos linguísticos.
O ritmo do hexâmetro dactílico é praticamente impossível de ser recriado nas línguas modernas e constitui uma das principais dificuldades para o tradutor de Homero que almeja a transposição em versos. A adoção precursora do metro do decassílabo revelou-se, contudo, um experimento profícuo e uma proposta estimulante para novas traduções de poesia épica em língua portuguesa. Sua eficácia pode ser comprovada pelo predomínio da concisão elegante nas expressões e, aliado ao bom gosto na escolha do léxico, pela melopéia sedutora gerando pura fruição musical. Bem o exemplificam os versos 470-483, mais belo momento da tradução (veja texto ao lado)
O leitor está, portanto, diante de uma tradução de alto nível, que não poupa esforços para nos dar uma amostra significativa da beleza perene do maior poema de todos os tempos.
NOTAS
(1) Borges, Jorge Luis, acerca da discussão de dois famosos tradutores de Homero para o inglês (Newman e Arnold), in "Prosa completa", volume 1, pág. 183, Bruguera, Barcelona, 1980. O título do ensaio é "Las versiones Homericas"
(2) Bowra, C.M. "Historia de la Literatura Griega", trad. de Alfonso Reyes, Breviarios del Fondo de Cultura Económica, México, 1983, pág. 22
(3) Bailly, A. "Dictionnaire Grec-Français", Hachette, Paris, 1980, pág. 260
(4) Campos, Haroldo de. "A Palavra Vermelha de Hõlderlin", in "A Arte no Horizonte do Provável", Perspectiva, São Paulo, 1969.
(5) Snell, Bruno. "La Concepción Homerica del Hombre", in "Las Fuentes el Pensamiento Europeo", trad. de José Vives, Madrid, 1965, pág. 42.

LUIZ ALBERTO MACHADO CABRAL é pós-graduando em grego antigo na USP

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