São Paulo, domingo, 6 de novembro de 1994
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A bala perdida

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não foi às cinco em ponto da tarde –como a morte daquele toureiro que Garcia Lorca chorou. Foi um pouco mais cedo, aí pelas duas e quarenta e cinco, para ser mais preciso. E não se tratou da morte de ninguém, muito menos de um toureiro, espécime que, como os tubérculos e os carros sem ágio, são difíceis de encontrar por aqui.
Na verdade, não houve nada de importante àquela hora mas de repente eu olhei o relógio e vi que já não era manhã e não chegava a ser tarde, com o horário de verão o tempo não é o mesmo. Achei que aquela seria uma hora oportuna para acontecer alguma coisa, desde que não fosse o eclipse –que ocorrera mais cedo– nem o fim de mundo, que espero seja o mais tarde possível.
Súbito, tive a certeza de que seria atingido por uma bala perdida. Pode parecer delírio de cronista sem assunto e sem motivos decentes para continuar vivendo. Cheguei a parar na calçada e esperar pelo tiro que não chegaria a ouvir, garantem que não se ouve o tiro que nos mata nem o raio que nos fulmina –não sei quem já comprovou esse fato, deve ser uma hipótese como o preço da cesta básica cuja base é a soma de hipóteses climáticas e hortigranjeiras.
Parei e esperei. Evidente que seria uma bala perdida de alguma arma de uso exclusivo das forças armadas. E disparadas por alguém da polícia. Apesar de disporem de armamento pesado, na hora do pega-pra-capar os bandidos usam revólveres de brinquedo, espingardinhas de rolha. Nunca se ouviu dizer que bala perdida que mata criança na escola tenha vindo da arma de um bandido.
Bem, os minutos passaram, já eram três horas, "las tres en punto de la tarde". Segui o passeio, um pouco chateado por nada ter acontecido. Logo me reanimei: como o toureiro de Garcia Lorca, "con toda su muerte a cuestas", não devo desanimar. Haverá a tarde do touro, melhor do que a noite que nos leva sem direito ao sol e à arena.

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