São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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Para ciência, Eva foi criada antes de Adão

ANA GERSCHENFELD
DO "O PÚBLICO"

Para a ciência, Eva foi criada antes de Adão
Deus criou Adão à sua imagem. Depois criou Eva a partir de uma das costelas de Adão para que ele não se aborecesse sozinho no Paraíso. Na perspectiva bíblica, a masculinidade representa, assim, a condição inicial da humanidade.
Mas esta visão parece ser exatamente contrária à realidade biológica. Deus deveria ter começado por Eva e, a partir de uma costela da mulher, poderia ter criado Adão. Na verdade, é possível dizer que todos nascemos mulheres e só depois podemos nos transformar em homens.
No início de seu desenvolvimento no útero, os embriões humanos possuem tecidos que podem dar lugar, indiferentemente, a testículos ou a ovários. A masculinidade vem, ao que tudo indica, de um minúsculo gene que normalmente só os futuros homens possuem e cuja entrada em funcionamento desencadeia rapidamente a formação de testículos.
A pesquisa desse "interruptor" do sexo masculino culminou há pouco mais de três anos com a descoberta de um gene batizado de SRY (contração da expressão inglesa que significa "região determinadora do sexo no cromossoma Y"). E, para um grande número de especialistas, é hoje um fato estabelecido que o SRY é efetivamente o principal "gene do sexo".
Na verdade, mais do que o "gene do sexo", o SRY é, a rigor, o "gene da masculinidade". Para compreender isso, é preciso saber que a totalidade do patrimônio genético do ser humano consiste em 22 pares de cromossomas mais dois cromossomas sexuais –estes últimos designados por X (feminino) e Y (masculino). E que do ponto de vista genético a diferença entre homens e mulheres reside na combinação dos cromossomas sexuais de cada um deles.
No início deste século descobriu-se que os embriões geneticamente femininos possuem dois cromossomas sexuais do mesmo tipo XX e os geneticamente masculinos dois cromossomas sexuais de tipo diferente XY. A seguir, na década de 40, descobriu-se que a primeira tarefa dos hormônios secretados pelos testículos era eliminar o mínimo sinal de órgãos femininos no feto.
Como, além disso, os testículos se desenvolvem mais depressa que os ovários e, na ausência de testículos e mesmo de ovários, o aparelho genital que se desenvolve é sempre feminino (devido à presença, no útero, dos hormônios sexuais maternos), seria natural pensar que a escolha macho/fêmea dependesse do aparecimento (ou não) dos testículos e, portanto, da existência (ou não) do cromossoma masculino, o cromossoma Y. Ninguém parece hoje pôr esse fato em dúvida. E daí a supor que, por sua vez, essa aparição depende de um único gene, de um autêntico "interruptor", vai um passo.
O gene SRY humano foi descoberto em 1990 pela equipe de Peter Goodfellow, do Imperial Cancer Research Fund, de Londres, em colaboração com pesquisadores franceses da equipe de Marc Fellous, do Instituto Pasteur, de Paris. Esses pesquisadores reforçaram a seguir a posição de seu gene "candidato" analisando os casos de duas mulheres que possuíam um cromossoma X e um cromossoma Y (ou seja, indivíduos de sexo feminino mas que, de acordo com seu patrimônio genético, "deveriam" ter sido homens).
Como acontece muitas vezes, são exatamente estas anomalias, inexplicáveis à primeira vista, que permitem compreender os mecanismos normais em jogo. De fato, os pesquisadores verificaram, nestas mulheres, a presença de um sutil defeito genético no gene SRY. Outros casos semelhantes foram descobertos a seguir.
Na mesma época, uma outra equipe, liderada por Robin Lovell-Badge, do National Institute for Medical Research, em Londres, descobriu em uma cobaia o gene análogo ao SRY humano que foi batizado de "Sry". Alguns meses mais tarde, a equipe anunciava ter "a prova final de que o SRY é realmente o único gene necessário à determinação do sexo masculino".
Inserindo o gene "Sry" das cobaias em embriões de cobaias destinadas a serem fêmeas, os pesquisadores conseguiram obter cobaias machos. E embora ainda fosse preciso confirmar se o SRY humano tinha, de fato, a mesma função, hoje em dia parece já não haver dúvida sobre isso.
No entanto, o SRY não é o único gene em causa. Se ele é necessário para a masculinidade, existe entretanto toda uma "cascata" de genes responsáveis pela diferenciação sexual.
"A proteína cujo fabrico é comandado pelo SRY", diz Lovell-Badge, "é uma proteína que atua sobre outros genes. Com certeza esses outros genes são, por sua vez, responsáveis pela diferenciação efetiva de testículos em vez de ovários. Como o SRY só se encontra ativo durante um período de tempo muito curto, ele nunca poderia ser um desses genes da diferenciação. O SRY é apenas o interruptor, encarregado de ligar (ou desligar) os genes que irão fazer efetivamente o trabalho."
Há, com certeza, outros genes envolvidos, diz Ken McElreavey, um pesquisador irlandês que desde 1991 trabalha com Fellous no Instituto Pasteur e que é responsável pelo estudo do cromossoma Y. "Todos nesta área estão tentando encontrar o gene seguinte, quer observando pessoas com anomalias cromossômicas que provocam inversão de sexo, quer pelo estudo genético de grandes famílias", diz.
Em agosto último, o anúncio da descoberta de um novo gene, batizado de DSS, desencadeou um salto nesses estudos. Pesquisadores americanos e italianos, dirigidos por Giovanna Camerino, da Universidade de Pavie, na Itália, demonstraram que, quando se encontra duplicado no patrimônio genético de um indivíduo XY com um gene SRY em perfeito estado no cromossoma Y (e que portanto "deveria" ser homem), o gene DSS interfere na ação do SRY e dá lugar a um indivíduo de aspecto feminino. Para McElreavey, o gene DSS (que significa uma contração da expressão em inglês "inversão do sexo sensível à dosagem") pode ser exatamente o gene tão procurado –o que vem imediatamente depois do SRY na "cascata".
Para Giovanna Camerino, ainda que o DSS possa de fato se mostrar um fator importante da feminilização do embrião humano, não se pode dizer que seja um gene da feminilidade no mesmo sentido que o SRY é da masculinidade. Existe forçosamente uma hierarquia SRY e DSS, e DSS vem "depois" SRY no circuito genético da diferenciação sexual. "O SRY é o gene principal porque ele se encontra com o cromossoma Y, o único gene que está ausente em um dos sexos e presente no outro", diz a pesquisadora.
Os homens devem sua masculinidade, pelo menos nas fases iniciais de seu desenvolvimento, a uma ínfima parte de seu patrimônio genético. Curiosamente, o cromossoma Y, o único que diferencia o homem da mulher, é, ele próprio, um pequeno cromossoma com uma atividade muito reduzida. A existência dos homens parece estar pendurada por um fio na atividade de um cromossoma que é "quase um cromossoma morto", segundo Ken McElreavey.
A imagem não é, porém, totalmente verdadeira, pois, como acrescenta logo o pesquisador, existem genes ativos muito importantes no cromossoma Y nomeadamente os genes da fertilidade masculina (algo que, diga-se de passagem, não tem nada a ver com a masculinidade).

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