São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994 |
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China A política do filho único STEVEN W. MOSHER
Chi An, uma enfermeira da cidade de Shenyang na Manchúria, foi recrutada em 1981 para pôr em prática a política do filho único. Apesar de sua própria experiência –teve que interromper sua segunda gravidez– ela aceitou o emprego. Seu trabalho consistia em ligar as trompas das mulheres, em geral contra a vontade delas. Também praticava abortos quando a gravidez era descoberta a tempo ou ajudava a fazer os mais complicados quando a gravidez já estava mais avançada. Chi An não podia ficar por muito tempo indiferente à crueldade da política do filho único. Estava de plantão uma noite quando uma mulher que tinha fugido para o campo foi trazida de volta para a clínica. Um aborto tinha sido programado para o dia seguinte, mas a jovem deu à luz à noite. Nesse caso, os chineses fazem uma distinção fria. Se matar um recém-nascido é considerado crime, matar um bebê no momento exato em que sai do ventre de sua mãe é considerado um aborto, uma corajosa contribuição ao bem coletivo. O médico espera que o colo do útero esteja suficientemente dilatado para deixar aparecer a cabeça do bebê. Em seguida, pega uma seringa para injetar formaldeído no cérebro pela fontanela. Antes mesmo de começar a descer pela vagina, o bebê está morto. Mas naquela noite um menino forte nasceu antes que o médico tivesse tempo de preparar a seringa. "Por que eu deveria pagar uma multa por ter deixado nascer esse fedelho?", ele se perguntou. Pegou com uma mão o menino, com a outra a seringa que lhe enterrou no crânio. Depois foi embora. Chi An ficou consolando a mãe, histérica de tanta dor. Seu filho levou uma meia-hora para morrer. A consciência de Chi An –como a do médico– estava entorpecida pelo medo das represálias e continuou a trabalhar. Em 1982, o controle de natalidade foi ainda mais acirrado e um sistema de quotas, instaurado. Chi An, que se tornou a diretora do centro de planejamento familiar, deveria assinar um "contrato de nascimentos". Se ela conseguisse manter a quota de 322 nascimentos por ano, receberia um prêmio e uma menção honrosa. Mas se o número ultrapassasse em apenas uma criança sua quota, ela deveria pagar uma multa. No mês de janeiro, Chi An anunciava os nomes daquelas que o comitê de controle de natalidade havia autorizado ter uma criança durante o ano. Passava o resto de seu tempo fazendo exames nas mulheres que se suspeitava tivessem concebido um filho fora do plano e tentando convencer as que estavam efetivamente grávidas a abortarem. As que recusavam as "medidas curativas" –termo utilizado para definir o aborto– eram trancadas nos depósitos até que mudassem de idéia. Chi An nunca ultrapassou sua quota. Na metade dos anos 80, a quota passou de 322 para 65 nascimentos por ano. Quando Chi An se queixou, seu superior lhe disse para não ter mão fraca. "O uso da força é uma medida administrativa indispensável. Deng Xiaoping, ele mesmo, nos disse para fazermos tudo o que fosse necessário", disse a ela. Foi então que Chi An descobriu que uma de suas melhores amigas, Ah Fang, estava grávida de cinco meses. Ah Fang fugiu, na esperança de poder se esconder até o nascimento de seu filho. Chi An não podia permitir, porque o nascimento da criança estouraria sua quota. Foi atrás da amiga, com dois policiais. Ah Fang foi presa, levada de volta, obrigada a abortar e esterilizada pouco tempo depois. Chi An conseguiu manter sua quota novamente, mas não pôde ficar contente. Ao contrário, estava cheia de remorsos. Não só em relação a Ah Fang mas a centenas de outras mulheres. Decidiu que se recusaria a apoiar o Partido em seus esforços de tirar das mulheres o direito de gozar de seu próprio corpo. Não era coisa fácil. Sabia muito bem que não podia se arriscar a deixar seu posto na clínica, como fazem os ocidentais quando não concordam com a política de suas empresas. Deveria deixar seu horrível trabalho sem ser repreendida. Uma carta de seu marido, que estava nos EUA preparando uma tese de doutorado, deu-lhe a desculpa. Não podia pedir demissão, mas com a desculpa de ir encontrar o marido podia fugir da política do filho único. Quando chegou aos EUA, o impensável aconteceu: ficou grávida. E o carrasco se tornou a vítima. As autoridades chinesas mandaram que ela abortasse e ameaçaram sua família e seus amigos na China de represálias caso se recusasse. Mas Chi An não cedeu e pediu asilo político. Ela, o marido e as duas crianças vivem hoje no sudeste dos EUA. Chi An continua seus estudos de enfermagem e espera poder trabalhar um dia numa maternidade para poder ajudar as mulheres em vez de lhes fazer mal. Texto Anterior: Calment, a avó do planeta Próximo Texto: A batalha do cérebro Índice |
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