São Paulo, terça-feira, 8 de novembro de 1994
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China

A política do filho único

STEVEN W. MOSHER
ESPECIAL PARA O "WORLD MEDIA"

Há treze anos, Deng Xiaoping lançou esta frase aos responsáveis do Partido Comunista Chinês: "Façam tudo o que devem para que a população diminua. Vocês não têm nada a temer, o Comitê Central os apóia." Toda mulher grávida sem autorização deveria abortar. Todo casal que já tivesse dois filhos deveria passar por uma esterilização obrigatória e, nesse contexto, "casal" em geral queria dizer a mulher.
Chi An, uma enfermeira da cidade de Shenyang na Manchúria, foi recrutada em 1981 para pôr em prática a política do filho único. Apesar de sua própria experiência –teve que interromper sua segunda gravidez– ela aceitou o emprego. Seu trabalho consistia em ligar as trompas das mulheres, em geral contra a vontade delas. Também praticava abortos quando a gravidez era descoberta a tempo ou ajudava a fazer os mais complicados quando a gravidez já estava mais avançada.
Chi An não podia ficar por muito tempo indiferente à crueldade da política do filho único. Estava de plantão uma noite quando uma mulher que tinha fugido para o campo foi trazida de volta para a clínica. Um aborto tinha sido programado para o dia seguinte, mas a jovem deu à luz à noite. Nesse caso, os chineses fazem uma distinção fria. Se matar um recém-nascido é considerado crime, matar um bebê no momento exato em que sai do ventre de sua mãe é considerado um aborto, uma corajosa contribuição ao bem coletivo.
O médico espera que o colo do útero esteja suficientemente dilatado para deixar aparecer a cabeça do bebê. Em seguida, pega uma seringa para injetar formaldeído no cérebro pela fontanela. Antes mesmo de começar a descer pela vagina, o bebê está morto.
Mas naquela noite um menino forte nasceu antes que o médico tivesse tempo de preparar a seringa. "Por que eu deveria pagar uma multa por ter deixado nascer esse fedelho?", ele se perguntou. Pegou com uma mão o menino, com a outra a seringa que lhe enterrou no crânio. Depois foi embora. Chi An ficou consolando a mãe, histérica de tanta dor. Seu filho levou uma meia-hora para morrer.
A consciência de Chi An –como a do médico– estava entorpecida pelo medo das represálias e continuou a trabalhar. Em 1982, o controle de natalidade foi ainda mais acirrado e um sistema de quotas, instaurado. Chi An, que se tornou a diretora do centro de planejamento familiar, deveria assinar um "contrato de nascimentos". Se ela conseguisse manter a quota de 322 nascimentos por ano, receberia um prêmio e uma menção honrosa. Mas se o número ultrapassasse em apenas uma criança sua quota, ela deveria pagar uma multa.
No mês de janeiro, Chi An anunciava os nomes daquelas que o comitê de controle de natalidade havia autorizado ter uma criança durante o ano. Passava o resto de seu tempo fazendo exames nas mulheres que se suspeitava tivessem concebido um filho fora do plano e tentando convencer as que estavam efetivamente grávidas a abortarem. As que recusavam as "medidas curativas" –termo utilizado para definir o aborto– eram trancadas nos depósitos até que mudassem de idéia. Chi An nunca ultrapassou sua quota.
Na metade dos anos 80, a quota passou de 322 para 65 nascimentos por ano. Quando Chi An se queixou, seu superior lhe disse para não ter mão fraca. "O uso da força é uma medida administrativa indispensável. Deng Xiaoping, ele mesmo, nos disse para fazermos tudo o que fosse necessário", disse a ela.
Foi então que Chi An descobriu que uma de suas melhores amigas, Ah Fang, estava grávida de cinco meses. Ah Fang fugiu, na esperança de poder se esconder até o nascimento de seu filho. Chi An não podia permitir, porque o nascimento da criança estouraria sua quota. Foi atrás da amiga, com dois policiais. Ah Fang foi presa, levada de volta, obrigada a abortar e esterilizada pouco tempo depois.
Chi An conseguiu manter sua quota novamente, mas não pôde ficar contente. Ao contrário, estava cheia de remorsos. Não só em relação a Ah Fang mas a centenas de outras mulheres. Decidiu que se recusaria a apoiar o Partido em seus esforços de tirar das mulheres o direito de gozar de seu próprio corpo.
Não era coisa fácil. Sabia muito bem que não podia se arriscar a deixar seu posto na clínica, como fazem os ocidentais quando não concordam com a política de suas empresas. Deveria deixar seu horrível trabalho sem ser repreendida. Uma carta de seu marido, que estava nos EUA preparando uma tese de doutorado, deu-lhe a desculpa. Não podia pedir demissão, mas com a desculpa de ir encontrar o marido podia fugir da política do filho único.
Quando chegou aos EUA, o impensável aconteceu: ficou grávida. E o carrasco se tornou a vítima. As autoridades chinesas mandaram que ela abortasse e ameaçaram sua família e seus amigos na China de represálias caso se recusasse. Mas Chi An não cedeu e pediu asilo político.
Ela, o marido e as duas crianças vivem hoje no sudeste dos EUA. Chi An continua seus estudos de enfermagem e espera poder trabalhar um dia numa maternidade para poder ajudar as mulheres em vez de lhes fazer mal.

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