São Paulo, domingo, 13 de novembro de 1994
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Covas, Rossi e Caracala

MARCELO LEITE

Vejo-me novamente na situação de escrever esta coluna nas vésperas de uma eleição importante, o segundo turno em 18 das mais importantes unidades da Federação –entre elas o Estado de São Paulo, meu tema de hoje.
Na estréia, em 2 de outubro, afirmei sem pestanejar que a imprensa como um todo tinha "henricado". Ao mesmo tempo, lancei dúvidas sobre a teoria de que teria havido uma conspiração "da mídia" em favor de Fernando Henrique Cardoso.
Se volto a assunto semelhante, não é desta vez para apontar favorecimento a Mário Covas (PSDB) ou Francisco Rossi (PDT). Acho até que houve muito preconceito contra o pedetista, em grande parte alimentado pelo uso oportunista da religiosidade em sua campanha, mas denunciá-lo não é meu objetivo central.
A cobertura do segundo turno pela Folha –o diário que me cabe vigiar de perto– é digna de análise porque permite evidenciar alguns de seus principais defeitos e qualidades. Sobretudo, que o jornal cultiva um saudável espírito crítico. Mas também que, quando comete exageros e injustiças, a Folha igualmente não escolhe partido ou ideologia.
Meu alarme soou pela primeira vez com a edição do dia 9 de outubro (aquela de má memória, que atrasou 11 horas por causa de falta de papel). O caderno Supereleição apresentava, na página 3, um grande perfil do azarão Rossi.
Na crítica interna da edição, que circula diariamente na Redação da Folha, elogiei uma reportagem equilibradamente crítica sob o título inteligente de "Rossi aderiu a cinco partidos e 3 religiões" (apesar da falta de padrão na grafia dos numerais). A seu lado, porém, o texto "Candidato lembra seriado de TV" alinhavava uma série de preconceitos contra hábitos como ir ao McDonald's, por certo partilhados por muitos leitores.
Anotei, na nota "O risco do covismo", que "o pior erro que a Folha poderia cometer, depois de dormir no ponto com o ex-prefeito de Osasco, seria iniciar uma espécie de campanha contra ele".
Nas semanas seguintes, o que se viu –nas páginas também de "O Estado de S.Paulo"– foi uma saraivada de editoriais, colunas e até reportagens pintando Rossi como um charlatão reles, milagreiro de araque. Era o tiro que saía pela culatra, pelo menos junto ao público dito formador de opinião.
O pedetista, afinal de contas, vivia de Bíblia na mão. E não perdia a chance de entoar seu sucesso "Segura na Mão de Deus" no programa eleitoral compulsório de rádio e TV.
Como que para ilustrar a frase surrada de que a história se repete como farsa, a eleição se despolitizava, com o aval e até o entusiasmo da imprensa. Em lugar do real, a moeda que eclipsou as propostas para o país no primeiro turno, entrava em cena a religião. Um fetiche e o ópio do povo, para ficar nas imagens gastas.

A Folha nunca foi um jornal linear. Paralelamente à guerra religiosa artificial, deu partida a mais uma iniciativa entre quixotesca e iluminista: pôr em discussão as prioridades para o futuro governador. Com seu senso agudo para o marketing, batizou o projeto como "Cidadão Folha" e selecionou entre centenas de candidatos nove pessoas comuns para entrevistar separadamente Covas e Rossi.
O resultado dessa forma "sui generis" de democracia direta você pode conferir na edição de hoje. A série de reportagens veiculadas nos últimos dias, sobre os principais temas levantados, lembra no esforço e na generosidade os cinco cadernos Brasil 95. Com eles, a Folha tentou pôr em discussão programas de governo muito antes do primeiro turno presidencial –e acabou falando sozinha.
No dia 23 de outubro, porém, o jornal dedicou uma página inteira ao candidato Rossi. O prato forte era uma longa entrevista exclusiva, cuja agressividade elogiei na crítica interna. Entre outras perguntas incisivas, uma tocava na fama de milagreiro:
"Folha - O sr. já disse à Folha que pára tempestade e abre trânsito com a mente...
Rossi - Já parei, no passado".
O detalhe em que o diabo se escondeu, desta vez, estava em um pequeno texto no canto inferior esquerdo da página, sob o título "Escritório exalta 'glórias' de Rossi". O segundo parágrafo, imaginativo, merece registro:
"Há ainda um busto em bronze, de Rossi naturalmente, feito à semelhança das célebres esculturas do imperador romano Caracala, que governou entre 211 e 217. Grandioso no modelo, Caracala matou mais de 20 mil pessoas em seu reinado. Rossi é cristão."

Na mesma crítica da edição de 23 de outubro, escrevi: "Resta saber se Covas merecerá o mesmo". No meu raciocínio, para manter-se equilibrado, o jornal deveria realizar um interrogatório semelhante com Mário Covas. Só não precisava fazer comparações com, digamos, Nero ou Calígula.
O fato é que essa entrevista até agora não saiu. Por recusa do próprio candidato, que há pelo menos três semanas é assediado e alega "falta de tempo". A suposta dificuldade não impediu o candidato de aceitar convite do mesmo jornal para a conversa com os nove "cidadãos Folha".
O jornal partiu para o ataque com três notas na seção Painel do último sábado. Acusava Covas de repetir "a tática do ex-adversário e hoje aliado Paulo Maluf, que, na campanha à Prefeitura de São Paulo, em 92, também preferiu não dar entrevistas". As notas motivaram uma resposta do assessor de imprensa de Covas, publicada na edição de terça-feira.
Na quinta, a Folha saiu-se com um obus contra o tucano, na forma de um título no alto da página 1-11: "Covas promete parar obras em São Paulo". O texto, estranhamente, falava apenas em "manter paradas obras do atual governo".
Existe muita diferença entre "parar" e "manter paradas", qualquer um vê. Só para contrastar, reproduzo o título da página 7-8 da edição regional Folha Norte (a entrevista tinha sido concedida em São José do Rio Preto): "Covas afirma que vai manter obras paradas".
Outro título, para o qual me chamou a atenção uma leitora atenta: "Petistas rejeitam apoio a tucano". O texto logo abaixo informava que apenas 2 de 11 vereadores do PT paulistano tinham recusado assinar apoio a Covas.
No dia seguinte, a Folha colhia o que havia plantado. À página 1-11, informava seus leitores: "Covas agora nega que manterá paralisadas as obras públicas (...) Não é a primeira vez que o tucano tenta negar declarações dadas por ele". Nenhuma palavra sobre o título enviesado da edição anterior. E o fecho do texto curto e oblíquo também é digno de nota:
"Durante a campanha para presidente, seu colega de partido, Fernando Henrique Cardoso, usou do mesmo artifício. Por quatro vezes tentou desmentir declarações gravadas dadas à Folha."
Sobrou até para FHC.

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