São Paulo, quinta-feira, 17 de novembro de 1994
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Um desafio civil

RENATO JANINE RIBEIRO

Quem diria que o Exército brasileiro enfrentaria tão cedo o mesmo desafio que seu congênere norte-americano teve na Somália e no Haiti? Pois o possível recurso às Forças Armadas, para coibir a violência nos morros do Rio, coloca as mesmas questões daquelas experiências –a primeira um fracasso retumbante, a segunda ainda em curso– e exige que se pense com ambição, se se quiser ter sucesso.
Acabou, pelo menos por ora, o cenário das guerras externas –em nosso caso, da famosa HG ("hipótese de guerra") com a Argentina. O problema militar agora está em intervenções que se pretendem cirúrgicas, para reprimir casos de violência tão desmedida que nem seria mais política, apenas criminosa em larga escala ou mesmo demente: casos de séria dissolução do tecido social.
Sucede, porém, que praticamente nenhum exército foi treinado para esse tipo de missão, inédita na história moderna. O inimigo é poderoso, porém apolítico. Seu desejo de poder não encontra álibi em nenhum ideal, político, religioso ou étnico. Seu gosto da força, do prestígio e do prazer não se justifica por nenhum discurso. Da luta contra esse inimigo, os exércitos pouco entendem.
É por isso que, embora talvez não haja mais alternativa ao uso da força extrema contra o crime supostamente organizado (na verdade, altamente concorrencial) no Rio de Janeiro, cabe lembrar que este é apenas um aspecto menor do que precisa ser feito. Porque o poder paralelo que se criou nas favelas, substituindo o Estado, não é um detalhe. É o essencial.
Ora, a prioridade hoje não pode ser, apenas, impedir que balas perdidas atinjam prédios ou escolas de classe média, ou que bandidos açodados ataquem delegacias ou quartéis. Nada se fará, em termos da justiça devida a boa parte dos cidadãos cariocas –hoje vivendo sob uma autoridade ilegítima, que ninguém elegeu e que aplica penas, como a de morte, desumanas–, se apenas maquiarmos a sociedade e a cidade.
O fundamental é desarticular a estrutura de poder perversa que se apossou de parte do Rio, e pode fazer o mesmo em São Paulo. Trata-se de um esquema inteiro de poder, cumprindo funções que seriam do Estado, desde a assistência social até uma rede bancária informal, da existência de uma força armada até o poder disciplinar que reprime pequenos concorrentes ao grande crime.
Essa desarticulação não se fará sem forte apoio bélico –talvez. Mas ao Exército, se for mesmo o caso de utilizá-lo, somente cabe o apoio. O essencial é uma intervenção maciça e especializada de quem tem saber e condições de mudar o perfil social e político (no sentido daquilo que é "relativo ao poder") nas áreas marginalizadas.
Quem tem esse saber são os formados em ciências humanas –de trabalhadores sociais a professores, de pedagogos a sociólogos. Esta é uma grande ocasião para a aplicação da ciência. Estudos de qualidade, levados a cabo pelos melhores cientistas sociais brasileiros, podem resultar em ação prática.
Em outras palavras: profissionais para modificar a estrutura perversa existem. Estão, é verdade, entre os discriminados do setor público, padecendo de salários baixos e de falta completa de infra-estrutura. Mas é a eles que a sociedade, se quiser resolver o problema pela raiz, tem de recorrer.
Não é suficiente, pois, haver mão-de-obra capacitada a agir. É fundamental que haja vontade política: que o poder público e a sociedade formulem um plano efetivo de incorporação à cidadania dos moradores hoje acuados pelo crime, e que nessa direção se valham tanto de profissionais capacitados quanto de todas as parcerias possíveis.
Um programa viável tem de ser civil. Pode e mesmo deve utilizar apoios armados, mas seu espírito global é civil, porque não se limita à pequena tarefa negativa de prender gente. Seu intuito é dissolver uma ordem iníqua e ilegítima, para ajudar a constituir-se, em seu lugar, um espaço de democracia e paz.
Isso significa, também, que um tal programa demora tempo e custa dinheiro. É ilusório imaginar que o Exército ocupe o morro, prenda os traficantes, vá embora e tudo se resolva como num filme do "Velho Oeste".
Qualquer ação, inclusive militar, só terá sentido se perdurar o necessário para mudar o status quo –tempo este que se mede, otimisticamente, em alguns anos. Será preciso dar presença ao Estado, e também à empresa, criar empregos, criar, pois, futuro; e, também, conter a violência que germinou e não some de um dia para outro.
Não há alternativa. Ou o país investe pesadamente nessa que é a mais viva das chagas do desigual desenvolvimento brasileiro, ou deixará armada a bomba-relógio. Soluções demagógicas, para aparecer na televisão, não adiantarão nada. Apenas soarão a mais uma tentativa, num fim de mandato presidencial, para conseguir popularidade.

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