São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
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Guaritas noturnas

RICARDO SEMLER

BELFAST, IRLANDA DO NORTE - Na penumbra, passando silenciosamente de carro, o longo barracão militar e as figuras soturnas dos policiais ingleses geram momentos desconfortáveis. E sombrios, ao pensar nestes corajosos homens da lei que estão há anos sendo colocados nas ruas da Irlanda do Norte para servir de bastiões de um colonialismo mal ajambrado.
Mas, como em Kashmir, no Afeganistão ou em Soweto, visitar um país em guerra civil não é nada parecido com o que vemos através das lentes de fotógrafos e cinegrafistas.
A vida continua, e com inescrutável determinação. Causam espanto o otimismo e os sorrisos que vêm à tona nas simpáticas feições da população local, em qualquer destes países.
Abuso da boa vontade dos participantes do primeiro fórum pós-armistício ao lembrar conversa com um empresário local. Este havia me dito que a chuvosa terra irlandesa poderia fazer bom uso de exportação de um pouquinho de sol do Brasil.
Depois de saber que a seleção deles perdera por 4 a 0 no dia anterior para a República da Irlanda, sugeri ao grupo que poderia fazer uso de mais do que apenas esta exportação brasileira. Gargalhadas e vaias se alternaram enquanto eu fazia uso safado de um de nossos únicos trunfos no exterior, o futebol.
A ministra de Indústria e Agricultura me conta que já dirigiu carro em rali pelo Brasil, abrangendo Manaus, Rio e São Paulo, antes de seguir para a Cidade do México. Olho-a de cima para baixo e ela ri, confirmando que é verdade, apenas era bem mais moça.
Começa um longo debate sobre a questão de vida numa economia pós-guerra civil, e vêm à mente notícias recentes do Brasil. O Rio invadido por Forças Armadas, Exército treinando tropas para assaltar as favelas e reconduzi-las à vida civil e legal.
Fico pensando na relação. Afinal, a Irlanda do Norte viu algumas dezenas de mortos por ano por conta da violência. No mesmo período o Rio de Janeiro, fruto da fraqueza das elites locais e seus caciques políticos, matou mais gente por dia do que os irlandeses por mês.
Aqui, ao menos, há horror quando uma criança inocente sofre um atentado. No Rio, são muitas vezes os pequenos empresários que encomendam as mortes. Não é por menos que o Brasil recebe 40 vezes menos turistas do que a pequena Espanha. O Rio é o cartão de visitas do Brasil e precisa ser recuperado por todo o país. Não tem condições de fazê-lo sozinho. E o carioca Fernando Henrique sabe disto melhor do que qualquer um.
Não que São Paulo seja melhor do que Belfast, ou Rio. Aliás, tem um número maior de favelas –1.911 delas distribuídas pela cidade– do que o próprio Rio. Não tem uma Rocinha de 200 mil habitantes, mas tem 3 milhões de encortiçados e favelados, outdoor digno de Calcutá para os turistas que chegam, horrorizados, pela Marginal do Tietê.
Depois, estes seguem um dos rios urbanos mais sujos do planeta, um Triângulo das Bermudas de dinheiro público, representativo dos túneis, elevados e obras que tanto custam e pouco fazem.
São Paulo consome sua guerra civil em "low profile", como se não quisesse atrapalhar a paz dos governantes ineptos colocados lá pela classe média inconsciente que caracteriza cidades malsucedidas como as nossas.
Belfast vive momentos de paz, enquanto o Brasil mostra a cara feia de décadas de incompetência social. Aqui desmontam as barreiras do Exército, enquanto no Rio elas são levantadas. Eta, mundo velho.

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