São Paulo, domingo, 20 de novembro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Vietnã é aqui

CAETANO LAGRASTA NETO

Quem deve combater o crime organizado (mafiosos, narcotráfico, bandidos de morro, justiceiros de bairro, esquadristas da morte)? Se fosse na Europa caberia aos carabineiros, à guarda civil, enfim, à polícia judiciária, comandada pelos juízes de instrução. Se fosse nos Estados Unidos –tirando o "glamour" hollywoodiano –, pelos promotores públicos, nada obstante a ganância por cargos políticos.
Nesses países, salvo invasão da Terra por discos voadores, desconhece-se a convocação das Forças Armadas para o combate ao crime organizado. Por que, no Brasil, pela segunda vez, promove-se esta convocação daqueles que são guardiães da Constituição, nunca da incapacidade ou estreiteza dos governantes, para expurgar as consciências dos flagelos, no passado, do comunismo, hoje, dos incômodos da negritude, da pobreza e da delinquência?
Será que não há Segurança, Ministério Público ou Poder Judiciário no Estado brasileiro? (Há, mas não como na Itália, onde, num mesmo dia e hora, os juízes de instrução, que comandam os policiais e os inquéritos criminais, conseguiram prender mais de 800 mafiosos).
Será que aqui as "forças da segurança" têm medo de subir nos morros? Será por que é mais fácil fazer guerra através de "forças militares", repetindo os fiascos das Malvinas e do Vietnã, às custas de gerações viciadas em tóxico por medo de enfrentar o inimigo oculto, protegido pelas populações locais?
Não se pode confundir segurança do Estado com segurança da população, diante da incapacidade do sistema de enfrentar o banditismo, obrigando policiais civis e militares a saírem do aconchego das delegacias e intendências.
Esta espécie de convocação irá refletir na conduta sócio-político-ideológica do povo brasileiro, ante a perspectiva de ser acionada por qualquer perturbação dos interesses privados e da mídia, com o afastamento de governantes eleitos e desestabilizando os poderes do Estado.
O recurso a paliativos golpistas insufla a quebra da ordem constitucional, abalando o ainda frágil Estado democrático de Direito, onde, inseguros, engatinhamos. Não é difícil imaginar um perigoso "efeito Orloff": os militares em combate nunca estão dispostos a recuar ou perder; se ganham, salvam a Federação e seus Estados; se perdem, não haverá limites ao banditismo.
Tomando-se como princípio que ao militar não é dada a alternativa da desobediência, como imaginar recrutas invadindo morros ou "estourando bocas de fumo" ou fortalezas de traficantes, sem pensar em cenas de filmes sobre o Vietnã?
A vitória desta espécie de repressão poderá dar uma garantia de impunidade e comando incontroláveis às Forças Armadas, agora desvestidas de suas tarefas constitucionais em razão de um "convênio". Na concretização deste, quem pode garantir que, no fragor da batalha e na luta pela hierarquia cega, não venham a ocorrer imposições estratégicas pelo controle dos espaços físicos e ideológico, capazes de induzir a abolição dos Poderes Legislativo e Judiciário?
É difícil imaginar que os direitos humanos estejam garantidos, quando começarem os interrogatórios e a tortura dos porões, quando a proteção do cidadão estiver acima de sua própria vida.

Texto Anterior: EUA têm legislação pioneira
Próximo Texto: Sigilo administrativo é exceção
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.