São Paulo, sexta-feira, 2 de dezembro de 1994
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Cravo e ferradura

EDUARDO RIBEIRO CAPOBIANCO

O financiamento de campanhas eleitorais do Partido dos Trabalhadores por empreiteiras de obras públicas deu origem a uma controvérsia que pode ser muito útil para o aperfeiçoamento dos mecanismos democráticos brasileiros.
Entretanto, a discussão do assunto tem ficado circunscrita a uma só pergunta: à luz dos princípios que governam o ideário do PT, pode ou não pode essa agremiação receber doações eleitorais de empreiteiras? Por diversos motivos, essa é uma forma míope de encarar a questão.
Dado que, evidentemente, as empreiteiras mencionadas no noticiário não mantêm identidade doutrinária em relação ao PT, muito ao contrário, e dado que elas também contribuem com outros partidos, o que cabe perguntar é: quais circunstâncias justificam o fato de uma empresa (que tanto pode ser uma empreiteira como um banco ou um grupo industrial) financiar indiscriminadamente partidos e/ou candidatos situados em todos os quadrantes do espectro político? Por que essas empresas apostam em todas as possibilidades?
Só há uma resposta para isso: ao dar uma no cravo e outra na ferradura, as empresas em questão esperam obter vantagens e evitar contratempos, seja qual for o eleito. Em muitos casos elas fazem isso no escuro, sem compromissos por parte de quem recebe o financiamento. Pagam para ver. E nem sempre vêem o que gostariam.
O que alimenta tal gênero de atitude é uma determinada perspectiva quanto ao papel que se espera dos governos. Estes são encarados como distribuidores arbitrários de benesses e de penalidades. O mecanismo segundo o qual se dá essa distribuição é o mesmo: pelo favorecimento de determinadas empresas em concorrências públicas e pela facilitação do acesso a informações privilegiadas quanto a medidas governamentais em gestação.
Quanto vale, por exemplo, conhecer com 24 horas de antecedência uma mudança de alíquota, uma intervenção no câmbio, uma aquisição de safra, uma descoberta petrolífera? Esse assunto, aliás, tem recebido pouquíssima atenção da imprensa e da opinião pública.
Por outro lado, muitos governos usam instrumentos ilícitos ou, no mínimo, imorais para prejudicar empresas que consideram "inimigas". No setor de obras públicas, uma das armas favoritas é a suspensão do pagamento por serviços executados, cancelamentos, obstaculização burocrática e o uso de todo um arsenal de empecilhos diversos para violar o direito de cidadania do empresário que fornece para o poder público.
O multifinanciamento eleitoral tem assim sua origem nos vícios que infestam a relação público-privado no Brasil. A origem desses vícios está em primeiro lugar no próprio Estado, que além de desmesurado e labiríntico onde não deve é raquítico onde deveria ser forte. É especialmente raquítico na transparência de seus atos e na indisponibilidade de compartilhar seus processos decisórios com a coletividade.
Em segundo lugar, no rol de responsáveis estão empresas que se agigantaram nesse ambiente viciado e que são as principais opositoras da modernização não só do Estado como da própria economia brasileira.
Um dos modos de promover a modernização política no plano eleitoral é proibir de todo o financiamento direto de campanhas, substituindo-o por financiamento do Estado. É assim que, essencialmente, funciona na Alemanha e na Inglaterra.
As eleições constituem o foco principal dos mecanismos de representação democrática. Faz todo sentido, portanto, que seja o próprio Estado a responsabilizar-se para que elas transcorram do modo menos vulnerável possível a pressões espúrias, como são inerentemente aquelas de natureza financeira.
Enquanto isso não se adota no Brasil, precisamos buscar meios de reduzir as vulnerabilidades do sistema vigorante. É evidente que campanhas políticas precisam ser financiadas, senão não acontecem.
É também evidente que, em princípio, o fato de um candidato receber financiamento de uma empresa não significa necessariamente que se estabeleceu entre os dois um conluio com finalidades criminosas.
Por fim, é também evidente que o único modo que a sociedade tem à disposição para se proteger de eventuais conluios desse tipo é manter a atenção permanentemente acesa em relação a ambos os protagonistas: de um lado, o governante, de quem se exige tratamento equânime para todos; e, de outro, as empresas contribuintes de campanhas, que não podem ver satisfeitas expectativas de favorecimento.

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