São Paulo, domingo, 4 de dezembro de 1994
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Os fantasmas morais de Henry James

JOSÉ MARIA CANÇADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num dos inumeráveis prefácios que escreveu para os seus romances, Henry James (1843-1916) fez a sua célebre e empolgante distinção entre realidade e romance. A realidade, disse, "é aquilo que não podemos deixar de conhecer, enquanto o romance representa o que com todas as facilidades e riquezas do mundo, e toda a coragem e toda a aventura, nunca podemos conhecer diretamente, aquelas coisas que só nos podem alcançar através do belo circuito do pensamento e do desejo".
Ele se referia a essa espécie de "dever de imprevidência" que anima as suas personagens, à qualidade de emoção e de coragem das suas Daisy Miller, Princesa Casamassina, Isabel Archer, a esses valores que elas sustentam no momento mesmo em eles vão perecer, a esse secreto e imortal bater das asas do espírito que as empurra muito para lá do que seria razoável esperar. Referia-se a tudo isso que conforma o insuperável "realismo moral" dos seus romances. Mas certo que poderia referir-se assim também às aparições, às "perfeitas presenças" que, como nestes cinco contos, afloram nas histórias de fantasmas que escreveu.
Como o correto Sir Edmund Orme (do conto homônimo que abre este livro, e que foi publicado pela primeira vez em 1891), os fantasmas de Henry James são muito mais o efeito de um violento e quase irreconstituível deslocamento moral, fole e dobra da nossa própria experiência, do que o espoucar de uma alucinação. Assim é com o próprio Sir Orme, que mais parece um príncipe enviado de um reino oriental que não convém lembrar, e exerce uma espécie de ligeira pressão sobre os acontecimentos, vigiando, longo e eterno, perfeito cavalheiro das almas deste mundo, para que não se repita a mesma atrocidade de que ele fora vítima. Mais do que fantasmas por toda parte, o que a paixão moral de Henry James identifica é o monstruoso.
É essa pequena, mas firme, pressão sobre as situações, sob pena de cristalizar-se o insuportável, que em outro conto do volume ("A coisa certa", de 1893), é exercida pelo "fantasma" de Ashton Doyne, que interfere para que não seja concluída sua biografia. De uma perfeita ambiguidade, tão profunda quanto monstruosa, é o arranjo da narradora de "Os amigos dos amigos" (de 1896), ao arrumar um estatuto de aparição post mortem para a amiga que arrebatou o seu noivo para uma revivificante paixão. Nas figuras de tapeçaria da ficção de Henry James, fantasmas não são uma questão de aparição, mas de recalcado.
Ou de duplo, como na estupenda alegoria meio monástica, meio borgiana, de "O lado ameno", de 1900. Nela, um também escritor, momentaneamente subtraído ao mundo da coerção, transforma-se no seu "perfeitamente outro", e é recebido numa espécie de paraíso claustral e masculino, que Henry James chama, sabe-se lá com que misto de tremor punitivo e de auto-ironia, de "A Necessidade Atendida".
É porém no conto final do volume, "A bela esquina", o penúltimo escrito por ele, em 1908, que Henry James vê o seu próprio fantasma caminhar na sua direção. Ele aparece para o personagem George Dane quando este, décadas depois de ter-se mudado para a Inglaterra (Henry James também o fizera em 1876), resolve voltar aos Estados Unidos. "Um ícone catártico ou expiatório", diz o também tradutor José Paulo Paes no seu estudo ao final do livro, "para esse ficcionista que se comprouvera em criar outros fantasmas". Como tudo em Henry James, fantasmas também são uma questão de "relações internacionais" entre a América e a Europa.
Mas são sobretudo uma questão de moral. Tranquilos e nada ostensivos, um pouco como os objetos da "sala indiana" de um dos contos, e que são "reputados não propícios à sociabilidade", eles nos alcançam vindos não do circo ruim da alucinação, mas daquele "belo circuito do pensamento e do desejo" no qual os personagens de Henry James se vêem tão magnificamente apanhados.

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