São Paulo, segunda-feira, 5 de dezembro de 1994
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Leia a íntegra da fala de FHC

Leia a seguir a íntegra do discurso feito de improviso por FHC no encerramento do seminário no Itamaraty:
"Eu queria começar renovando meus agradecimentos e recordando duas pessoas que foram convidadas e não puderam assistir ao seminário. Eu me refiro ao Aníbal Pinto, que não veio por razão eventual, e espero que ele possa estar aqui dia 1º de janeiro, dia da posse, dia inconveniente para comemoração privada, mas afinal o público e o privado andam tão confundidos. Aníbal Pinto que, durante estes anos todos, estimulou muito nosso debate.
O outro nome é o Albert Hirshman, que transmitiu a mim um recado outro dia num documentário feito pela televisão, que o entrevistou lá em Princeton, lugar onde eu, o Serra e tanta gente trabalhamos e que nos deixou muitas saudades. O Hirshman se referiu a um livro que eu escrevi com o Enzo Faletto ("Dependência e Desenvolvimento na América Latina"), que é outro que não veio porque não quis... Mas o Hirshman disse lá uma frase assim: "a paixão pelo possível". Isso é muito do espírito do Hirshman e, talvez por influência dele, eu estou muito impregnado por essa paixão pelo possível.
Retomando o que disse o senador José Serra, que me chamou hoje pela primeira vez de presidente eleito, eu já tinha me referido aqui a um encontro que tivemos no Chile, quando eu disse que a história, na visão hegeliana, é um desdobramento da idéia. O Hélio Jaguaribe, com as tiradas brilhantes que tem, disse uma vez que, se todos fossem tão inteligentes como nós –é ele quem está dizendo–, Hegel teria razão. Bem. Na verdade, hoje nós temos que ser bastante mais modestos. E eu soube através de meus amigos argentinos que o Perón tinha uma frase que dizia "la realidad es la nación", o que me deixou assustado. Ninguém desconfia de Hegel. Então eu achei melhor não repetir aqui tudo isso que eu tinha dito lá no Chile, porque eu acho que uma das lições que nós tivemos nesses anos todos é que, por mais que a razão tenha uma importância enorme no processo histórico, como já mencionou o Celso Lafer, nós temos que introduzir um elemento de vontade para que as transformações ocorram.
E eu acho que dessas discussões todas ficou muito claro que nós estamos com uma dúvida sobre onde é que se coloca essa vontade. Qual é o ator? Quais são os atores? Quais são as possibilidades do movimento social? No mínimo, alguém que tem as responsabilidades que eu tenho desde já, e terei mais fortes ainda, leva a uma atitude de maior tolerância, como diz Celso Lafer. Mas tolerância ainda poderia significar que estamos na história hegeliana –eu tenho razão e tolero os outros. Eu diria então mais humildade. Humildade de entender que o processo de transformação não pode se fazer senão tendo em vista um conjunto muito amplo de valores, de conhecimentos, de interesses, e que é preciso, se nós mantivermos, como mantemos, a crença na democracia, estabelecer mecanismos de negociação para que não se caia num voluntarismo que é inócuo. Não é só condenável pelo lado político, mas é também inócuo na sociedade contemporânea.
Nós tivemos recentemente aqui no Brasil uma experiência bastante direta nessa matéria. Quando aquele que foi ungido pelo voto popular imagina que isso basta para transformar as coisas e acabou num prazo muito curto, não tendo sequer condições para continuar como governante.
Eu ouvi todos aqui com muito interesse e aprendi muita coisa. E quase todos foram na mesma direção, neste sentido. Eu quero também agradecer esta casa, o Itamaraty, e mostrar que há uma maturidade tão grande nas mudanças no Brasil que não há continuísmo, mas sim continuidade. O ministro Celso Lafer foi ministro do governo Itamar Franco (sic), eu também fui ministro do presidente Itamar Franco e nós estamos numa transição absolutamente suave. Isso é prova também de que nós caminhamos bastante nos nossos costumes políticos.
Na verdade, essa experiência democrática brasileira, que já está tão enraizada e nos permitiu este debate, me levaria a ousar um pouco depois dessa discussão e, se não fosse estar aqui, em relações diplomáticas, dizer que, depois do grito de Ibiúna –para os que não sabem, é uma chácara que eu tenho lá em São Paulo–, passando pelo consenso de Washington, nós poderíamos chegar ao acordo de Brasília. E este acordo de Brasília existe. Acho que no fundo nós todos estamos apontando na mesma direção. Na área econômica, e eu não vou repetir tudo porque vocês sabem mais do que eu, nós estamos decidindo com convicção. Nós localizamos os problemas da estabilização. Hoje já se sabe, mesmo um pobre sociólogo, e não sou o único, já que a Maria Hermínia (Tavares de Almeida) se declarou minha ex-aluna e também arranhando em economia, nós sabemos quais são as opções, quais são os riscos, e não são mais riscos não calculáveis. Então não há desculpas para se fazer grandes erros.
Não há mais desculpas, desde que nós tenhamos capacidade de ouvir e entender qual é a sequência das ações. E também sabemos que, embora haja uma certa simultaneidade, e o (Francisco) Weffort mencionou este tema, que é importante no processo político como na batalha, na guerra, é preciso escolher qual é o adversário. Embora haja expectativas de mudança muito amplas e rápidas, elas terão que ser submetidas aos golpes estratégicos, e eu concordo com o que disse o Serra. Ou seja, nós vamos ter que, não durante seis meses, mas quatro anos, reformar sem parar. É claro que os primeiros seis meses têm uma força de persuasão maior, mas acho que só teremos vencido a batalha das dificuldades brasileiras no que diz respeito à governabilidade se entendermos o tempo todo que vamos estar introduzindo modificações numa dada direção. Esta direção, ou rumo, este sim tem que ser desde o início. Em que direção vamos? Esta já está dita aqui. Tem que haver estabilidade, com crescimento, com distribuição de renda e com participação social. Palavras. Mas palavras que têm que ser realizadas na prática, ser feitas com muita persistência. Eu acho que há condições para isso.
Quando eu assumi o Ministério da Fazenda não havia no horizonte quem apostasse na possibilidade de uma mudança. Estou olhando para o meu amigo (Antônio Barros de) Castro, que participou de uma reunião de ministério comigo, da qual nós saímos e trocamos impressões. Ele sabe que o que eu estou dizendo é verdade. Não havia quem apostasse na possibilidade de se marchar para a reorganização da vida econômica brasileira porque nós vínhamos de um impeachment, nós estávamos num governo congressual, que não tinha o voto direto e que, portanto, tinha enormes fragilidades para enfrentar os problemas econômicos. Mesmo os economistas que estão no governo e estavam comigo desaconselhavam e não acreditavam na possibilidade de fazer-se alguma coisa mais profunda. Não sei qual foi a profundidade alcançada, mas nós enfrentamos e negociamos com todo mundo. Com o Congresso, com o governo, dentro do governo, com o presidente, com o país, com os devedores externos, o que não foi fácil. Essa é a questão entre o valor, o conhecimento e a vontade. Tem que haver um momento de vontade, de decisão, o momento em que se aponta o rumo com convicção, para usar uma palavra mais weberiana.
E neste ponto o Alain Touraine mostrou qual o papel que pode ter hoje o Estado, ou melhor neste caso, o governo, em termos da reconstrução das condições de governabilidade e de condições de participação e ampliação da cidadania. Se nós pensarmos de uma maneira mais complexa, nós vemos que há um momento em que isso é fundamental. O professor (Eric) Hobsbawm disse algo semelhante. Há um momento em que para se levar adiante um processo de transformação é preciso dar sinais muito claros, simbólicos até. Aqui tanto se falou em sinais simbólicos e a população, como disse o professor Juan Linz, ela tem mais paciência na democracia do que na ditadura. Eu tenho visto pesquisas agora. Ninguém espera milagre. Espera milagre às vezes um ou outro intelectual, um partidário, um adversário, algum jornalista, mas não o povo. O povo tem mais realismo, sabe que, quando o rumo começa a apontar para certa direção, reacende a esperança, desde que se continue a marcha. Não é preciso fazer tudo de uma vez, mas dar sinais sensíveis de que estamos caminhando com convicção. Isso é fundamental. Com convicção. E se estes sinais puderem ser traduzidos por medidas práticas, como lembrou o Alejandro (Foxley), melhor. Aí se sente qual é o rumo.
Mas eu acredito que hoje no Brasil, depois das experiências de estabilização e democratização na América Latina em vários países, algumas cujos atores aqui estão ao redor desta mesa, depois de tudo que nós aprendemos aqui no Brasil, hoje o horizonte é muito mais desanuviado. É muito mais fácil hoje do que foi há algum tempo, infinitamente mais fácil. Não por virtude de a, de b ou de c, mas porque aqui a força da sociedade depois da abertura democrática é tão grande que nós efetivamente temos recursos para seguir adiante.
Eu também queria fazer, quase para terminar, uma menção que nesses momentos de transformação, de reacender a chama do Brasil, algumas coisas muito simples marcaram. Nós assumimos o governo quando havia uma crítica cerrada à corrupção. Pois bem, nestes dois anos podem vasculhar os jornais. Não há rumor, rumor de corrupção em qualquer setor do governo central, ou que envolvesse pessoas diretamente ligadas ao sistema de decisão do governo. Isso se deve simplesmente ao fato de gente que –à frente de todos o presidente Itamar Franco– são outro gênero de gente. Pessoas simples que não estão dispostas a transformar o poder numa forma de ostentação. E, às vezes, gestos extremamente simples do presidente Itamar Franco, que muitas vezes não foram sequer compreendidos pela "intelligentsia", amplo senso, foram sentidos pelo povo. E o fosso entre o Estado e a sociedade, entre governo e povo diminuiu. E diminuiu sensivelmente.
Temos coisas bastante elementares. O poder era muito abstrato, era muito ausente e temido na época militar. Depois ele continuou não tão abstrato, mas ausente e desmoralizado. Agora é uma coisa mais natural. Isso é importante na democracia. É importante não confundir a dignidade da função com a pompa pessoal. São coisas que eu vi no Chile. Vi no Chile antes da ditadura e vi no Chile depois da ditadura. O Chile é meu segundo país. É assim. São coisas elementares que têm que ser feitas.
Acho que alguém já mencionou aqui, a cultura política sofreu modificação. O meu amigo Torcuato Di Tella diz que eu não gostei da comparação com o PRI (partido governista mexicano). Não é por isso. É porque é diferente a situação. O Weffort mencionou que nós temos aqui um jogo partidário muito intenso, lá não tem. Mas os temores todos das alianças que fizemos, ou que fiz, se preferirem, estes temores, creio que aqueles que me têm acompanhado depois das eleições perceberam que são infundados. Existe hoje de tal maneira uma vontade de que se acerte no Brasil que eu até disse ontem a alguns amigos: "olha aqui, estou sentindo falta de pressão". Tenho tanta liberdade de escolha que eu preferia ter menos, para sentir mais onde é que está o solo. Os temores do clientelismo, das pressões dos partidos, de que uma coisa seria o discurso e outra coisa seria a prática, que as alianças iriam cobrar um alto preço, nada disso é verdadeiro. Vez por outra eu leio coisas e digo: de onde é que tiraram isso, se não é verdade? E, de novo, isso não é virtude nem minha nem dos que estão comigo nessa aliança. É que o país mudou. A opinião pública cobra outras coisas e os políticos são sempre sensíveis. Até pelo interesse de se manterem flutuando na vida política, reagem às mudanças de cobrança da opinião pública.
Eu sempre me opus muito àqueles que pensam a política em termos estáticos e que têm uma visão do tipo "fulano é tal coisa". É, mas deixa de ser. Todo o jogo, todo o interesse da política, tudo o que tem de aventura na política é transformar a opinião do outro. Nesse processo, você pode também ser transformado pelo outro. É normal que assim seja. Mas quem se resguarda em valores absolutos –por isso que eu disse que precisa ter valor, conhecimento e vontade– quem fica simplesmente resguardado... fica na cátedra, que vá para o púlpito, mas não vá para a política. Porque a política é o que disse o Torcuato, é o que disse o Foxley. É um processo de modificação, não um processo de aferição do estado de alma de cada um ou dos valores de cada um. É um processo mais complexo, de modificação. Vamos ter que apostar, e tem que se jogar nessa aposta.
Eu quero agradecer mais uma vez e dizer que eu me joguei numa aposta, em termos pessoais, partidários e nacionais. Me joguei numa aposta quando tive que enfrentar o Ministério da Fazenda e aí a aposta foi difícil. Os outros é que apostaram em mim. E aquilo foi um sinal de que o Brasil tinha mudado. Porque não havia nenhuma razão para se acreditar que eu poderia fazer alguma coisa na área econômica. Quando voltei dos Estados Unidos, onde estava, e cheguei aqui todo mundo achava que era bom. Eu pensei, meu Deus, vamos ter que fazer alguma coisa. Me joguei numa aposta para ser candidato e os que privaram das decisões sabem como foi. Ou fazia isso ou não haveria estabilização. Porque os candidatos mais prováveis, os opositores mais fortes, tinham o coração bem posto e a razão perdida. Não tinham nem idéia de como seria possível enfrentar as questões reais. Foi, então, uma opção obrigatória. Agora não é mais opção. É uma determinação. Eu tenho um mandato e vou me jogar totalmente para tentar fazer o que foi dito aqui no acordo de Brasília. Muito obrigado a vocês todos."

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