São Paulo, quinta-feira, 8 de dezembro de 1994
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Jessye Norman faz Salomé arrebatadora

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Uma das maiores obras-primas do nosso tempo", dizia Mahler. "Uma peça de exibição, ridiculamente frígida", contestava Thomas Mann. "A mais bela de todas as obras de Strauss", discordava Hoffmansthal. "De uma trivialidade sem igual", rebatia o grande teórico Schenker. "Estupenda, de uma riqueza orquestral e rítmica sem paralelo", comentava Ravel. O contraste entre essas opiniões é característico e tem sido, até hoje, a tônica na história da recepção da ópera.
Primeiro grande sucesso teatral de Strauss (1864-1949), "Salomé" faz aniversário amanhã, 89 anos depois de sua estréia em Dresden. O libreto é uma tradução, com cortes, da tragédia de Oscar Wilde. Avesso ao confronto de idéias, extraordinariamente seguro de seus talentos de manipulação musical, o compositor definia a ópera com pragmatismo: "É um scherzo musical, com uma conclusão fatídica". Não é.
A história da deusa da histeria, com refinadas, ou nem tão refinadas, nuances de voyeurismo, reaparece inúmeras vezes no repertório de fins do século 19. De Flaubert a Oscar Wilde, passando por Huysmans e Mallarmé, Salomé surge como o retrato da ambivalência feminina, que é também um emblema da própria literatura. Irmã da Medusa, da Esfinge e das Sereias, Salomé agora vai se tornar, nas mãos de Strauss, a musa, ou antimusa, da música moderna.
Nem todo mundo tem estômago para uma ópera como essa, sempre no limite entre a arte e o kitsch. Recentemente, as obras de Strauss vêm sendo reavaliadas como um modelo alternativo de narrativa modernista. Tonalmente supersaturada, é uma música que caminha para os lados, mais do que para a frente, e faz do ornamento um princípio de composição.
Há uma fartura de gravações. Não faz muito tempo, a EMI relançou a versão cantada por Ljuba Welitsch, numa produção de 1948, dirigida por Peter Brook, com cenários de Salvador Dalí. Outras interpretações incluem desde Birgit Nilsson e Eva Marton até sopranos menos musculosas, como Teresa Stratas e Cheryl Studer.
Aproveitando a vinda de Jessye Norman ao Brasil (ela se apresenta amanhã e segunda no Cultura Artística, em São Paulo), a Philips distribui uma nova "Salomé", regida por Seiji Ozawa com a Staaskapelle Dresden. Vocalmente a mais improvável das adolescentes e visualmente a mais impossível das dançarinas, Norman é mesmo assim uma Salomé arrebatadora.
Nem James Morris, cantando o profeta Iokanaan, nem Walter Raffeiner (Herodes) são páreos para ela. E a rainha Heródias de Kerstin Witt soa como uma cobra, mas parece mais uma filha do que uma mãe –o que, no contexto, não deixa de ser significativo. Richard Leech é mais interessante: um Narraboth sensualissimamente não-correspondido.
Algumas notas agudas de lado, Norman canta Salomé como uma predestinada. Seu grito de "Iokanaan", na cena 3, é o suficiente para desfazer a vocação de qualquer profeta. Só um São João não perde a cabeça por ela; justamente por isto, acaba perdendo a cabeça.
O grande monólogo final é um prodígio de perversão musical. Seiji Ozawa traduz a ópera musicalmente um pouco para o francês, o que não soa mal. Nos faz escutar outras coisas em Strauss, como Stravinski. (É assim com os famosos contrabaixos, na cena da decapitação; e também com o trinado infinito dos sopros, logo antes do clímax, sobre o qual paira um pequeno motivo como um pássaro de mau agouro).
Os acordes de morte, no fim –fá contra fá sustenido!–, estão "entre os acordes mais explosivos jamais registrados em disco", segundo a revista "Le Monde de la Musique", que multiplica entusiasmo em exagero, mas quem não o faria?
Não há nada mais desagradável, mas igualmente tão sedutor, na música deste século do que a obra de Strauss. Ambivalência de gênero, desejo feminino, o olhar, o "orientalismo": são todos temas de "Salomé".
A isto se alia a mistura musical de linguagens: lirismo mozartiano e retórica wagneriana, com algo mais que não tem nome, a não ser "Strauss". Repulsa e sedução se combinam em "Salomé", que em retrospecto parece um emblema da própria arte da composição. Esta é uma das óperas do nosso tempo e Jessye Norman, uma de suas intérpretes definitivas.

Arthur Nestrovsky é doutor em música e professor na pós-graduação em comunicação da PUC/SP

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