São Paulo, sábado, 17 de dezembro de 1994
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Escritor cria 'Jules e Jim' da era da Aids

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O sucesso de "Uma Casa no Fim do Mundo" (Companhia das Letras, 348 págs.), segundo romance de Michael Cunningham, 42, começou bem antes do lançamento do livro, quando um dos capítulos foi publicado pela "The New Yorker", em 88.
A história de um menino de 9 anos que tomava ácido com o irmão de 16 e testemunhava a morte deste despertou a atenção de vários editores –Cunningham acabou nas mãos da prestigiosa Farrar, Straus and Giroux, que publicou o livro em 1990.
"Uma Casa no Fim do Mundo", cujos direitos foram imediatamente vendidos também para Hollywood, acompanha a vida de dois meninos de Cleveland (Ohio), até formarem, paralelamente ao surgimento da Aids, um triângulo amoroso com uma amiga em Nova York –não sem a influência do clássico "Jules e Jim", de Henri-Pierre Roché, consagrado pela adaptação de François Truffaut.
O próximo romance de Cunningham, "Flesh and Blood" –a saga de uma família de imigrantes–, a ser lançado em abril, também já foi comprado por Hollywood. Depois de ter sido barman, tentado a sorte numa fazenda e trabalhado escrevendo releases, Cunningham já pode pensar em ganhar a vida só com seus romances. O escritor falou à Folha por telefone de Nova York, onde mora.
Folha - Várias resenhas nos EUA disseram que seu livro buscava uma alternativa para a família tradicional. Concorda?
Michael Cunningham - Uma das coisas que aprendi com a crise da Aids é que a família, com que você deveria contar quando o resto do mundo te esquece, não dá necessariamente esse apoio. Vi pessoas com Aids serem rejeitadas por suas famílias e adotadas pelas famílias que elas próprias criaram entre os amigos. Vi esses amigos fazerem coisas que pensava que só as famílias fariam –limpar a merda e o vômito. Isso me despertou para a necessidade de uma definição mais ampla de família.
Folha - Ao mesmo tempo, você mostra nesse livro uma decepção semelhante em relação à família alternativa.
Cunningham - Não estava querendo fazer propaganda de uma nova família idealizada. O livro é sobre seres humanos, que decepcionam uns aos outros.
Folha - Por que a ficção americana é obcecada pela família?
Cunningham - A cultura americana é obcecada pela família. Não sei por quê. A última eleição colocou todos esses conservadores assustadores na direção do país. A reivindicação deles é mais uma vez "valores familiares".
Folha - Você acredita numa literatura gay? Ou acha uma bobagem?
Cunningham - Acho que foi uma bobagem necessária. É importante que haja livrarias gays e seções de livros gays. Espero que chegue logo o momento em que isso não será mais necessário e que as pessoas sejam apenas encorajadas a ler o maior número de livros possível sobre uma maior variedade de experiências.
Folha - Você também é militante do Act Up (movimento de conscientização sobre a Aids e os direitos dos homossexuais). Você acha que a militância ajuda ou atrapalha a literatura?
Cunningham - Para mim, é necessário fazer os dois. Acho que os romances são inevitavelmente políticos, mas agem de uma forma muito lenta. As pessoas estão morrendo agora e não tenho tempo para esperar até que um de meus romances tenha algum pequeno efeito na consciência nacional.

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