São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Uma usina de histórias e fofocas

JOSIAS DE SOUZA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Como toda grande corporação, o Itamaraty transformou-se numa usina de histórias curiosas. A disputa por promoções funcionais, essência da carreira diplomática, é aliada da fofoca. Conspira em favor da intriga.
Nos porões do mais vistoso e elegante prédio da Esplanada dos ministérios esconde-se, por exemplo, um caso de discriminação sexual. O episódio, ocorrido em 1964, permanece armazenado na memória de veteranos diplomatas.
Respirava-se um ar espesso em Brasília. Deposto o presidente João Goulart, inaugurava-se o período de governos fardados. Os militares tateavam a máquina pública a procura de "comunistas".
O Itamaraty foi um dos alvos da busca. Enxergava-se a Casa de Rio Branco como uma trincheira marxista encravada na Esplanada.
O país ainda estava sob o impacto dos atos da gestão-espetáculo de Jânio Quadros. Mencionava-se especialmente a condecoração, em 61, de Ernesto "Che" Guevara, então ministro da Indústria de Cuba, com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais alta comenda brasileira.
Causaram impacto também as ações do governo Goulart. Entre elas o reatamento de relações com a União Soviética, também em 61, e o histórico "não" brasileiro, proferido em discurso do chanceler San Tiago Dantas, à expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos, aprovada em 62 graças ao empenho dos EUA.
Em razão de tais "ousadias", a caça aos comunistas foi estendida no Itamaraty aos homossexuais. Dedurados por alguns colegas, foram expurgados da carreira cerca de uma dezena de diplomatas.
Se o apartamento falasse
Há episódios mais leves, como o folclore erigido à volta de um curioso cômodo, localizado na lateral esquerda do andar térreo do Itamaraty. Trata-se de um pequeno apartamento que, posto à disposição dos chanceleres, destoa do ambiente funcional.
Há ali uma sala, equipada com sofás e mesa de jantar redonda, com vista para o Congresso. Há ainda uma confortável saleta de leitura e uma suíte, além da cozinha. No quarto, o ministro dispõe de uma cama, cuja anatomia se aproxima à de um divã de analista.
Oficialmente, os aposentos são utilizados para que o chanceler promova almoços de trabalho. A julgar pela fama que adquiriu nos corredores, porém, o apartamento presta-se a finalidades bem mais prosaicas.
A seu tempo, o chanceler Saraiva Guerreiro (79 a 85), enfastiado do trabalho, valia-se das acomodações para entregar-se a longos e imperturbáveis períodos de sono.
Discorre-se ainda no "departamento de escadas e corredores", apelido dado no Itamaraty aos locais por onde escoam as futricas, sobre acalorados encontros amorosos que teriam sido testemunhados pelas paredes do apartamento. Quanto aos nomes dos personagens, convém preservá-los.
Parte do tempo vago dos diplomatas é preenchido, de resto, por diálogos em torno da "dança dos mandarins", como se referem às promoções políticas e mudanças de postos. Embora critiquem, sob reserva, o modelo de apadrinhamento político, os diplomatas não conseguem se livrar do sistema viciado. A maioria acaba se envolvendo na disputa por políticos capazes de apadrinhá-los junto ao presidente, a quem compete escolher os nomes dos diplomatas a serem promovidos.
No momento, um dos padrinhos mais disputados é José Aparecido, embaixador em Portugal e íntimo amigo de Itamar Franco.
O próprio chanceler Celso Amorim teve o apoio de um peso pesado quando de sua promoção, em 89, para ministro de primeira classe, último posto da carreira. Apadrinhou-o o então deputado Ulysses Guimarães.

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