São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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'Conflito com os EUA é normal'

Para Flecha de Lima, democracia acabou com hegemonias

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

O embaixador do Brasil em Washington, Paulo Tarso Flecha de Lima, um dos mais influentes diplomatas brasileiros de sua geração, acha que o Itamaraty vai precisar de mais recursos para atravessar o século 21.
Para ele, as relações internacionais do país vão se intensificar nas próximas décadas e o Itamaraty terá que ser aparelhado para enfrentar os novos desafios.
Em meio à visita do presidente Itamar Franco a Washington, acompanhado do conselheiro Pedro Bório, porta-voz da embaixada, Flecha de Lima recebeu a Folha, terça-feira passada, em sua residência para entrevista exclusiva.

Folha - Embaixador, como o sr. concebe o Itamaraty no século 21? Quais são as novas missões, as novas tarefas, as tendências?
Paulo Tarso Flecha de Lima - A nossa estrutura atual é claramente insuficiente para fazer face aos novos desafios. Nós vamos entrar no século 21 com complexas negociações envolvendo a ampliação dos nossos relacionamentos no hemisfério, um processo que acaba de ser sancionado em Miami e que vai representar uma demanda enorme.
Em segundo lugar, nós vamos ter que nos aparelhar para fazer face a uma solicitação maior de presença brasileira em outros quadrantes da Terra. Seja presença política, seja de tropas brasileiras em esquemas de paz patrocinados pela ONU.
Em terceiro lugar, apesar da diplomacia presidencial tornar os contatos cotidianos às vezes aparentemente desnecessários, o próprio processo de preparação de encontros de cúpula e a frequência maior com que eles vão ocorrer ensejarão uma carga enorme sobre a atual estrutura. Também, temos que nos aparelhar para conviver com regularidade com a política externa num ambiente democrático.
O Itamaraty não terá mais o monopólio dos assuntos de política externa. Ele terá que estar mais aberto para outros setores da nação, em especial o Congresso, que será cada vez mais participante. Na medida em que os interesses se diversificam, se tornam mais intensos e complexos, isso terá repercussões nas comunidades atendidas pelos congressistas e os congressistas serão necessariamente instados a dar opiniões em assuntos internacionais.
Folha - Inclusive, esse acordo assinado em Miami vai acabar afetando a vida material das pessoas representadas pelos parlamentares, não é?
Flecha de Lima - Sim. Um bom exemplo disso é o Rio Grande do Sul. Os congressistas de lá são os que mais procuram o Itamaraty, seja para defender a economia regional de proteções tarifárias no Mercosul ou em antigos acordos, seja para buscar espaços adicionais para suas bases nos países vizinhos.
Na medida em que o Congresso é o estuário das aspirações nacionais, o órgão mais representativo da nação, sua relação com o Itamaraty tem que ser crescente porque caberá ao Congresso oferecer o arsenal de instrumentos jurídicos para aparelhar as decisões que venham a ser estipuladas em negociações internacionais.
Folha - O que o sr. está dizendo contraria uma percepção quase de senso comum de muitas pessoas no Brasil de que, com a revolução tecnológica neste final de século, é menos necessário do que no passado manter no exterior um número grande de diplomatas. Como o sr. responde a essa opinião de muitas pessoas no Brasil?
Flecha de Lima - Olha, eu acho que isso é uma simplificação e reflete talvez uma visão muito arrumada da realidade. Na prática, o cotidiano da relação internacional se faz muito através dos contatos interpessoais, das iniciativas tópicas e pontuais. O fax ajuda muito, já se usa muito. Mas não substituirá o contato pessoal e direto entre os operadores diplomáticos. Ao contrário, nós temos é que ter mais diplomatas e mais presença no exterior. O número atual é obviamente insuficiente. Minha embaixada tem 23 diplomatas para dar conta da enorme massa de interesses que representa a relação com os EUA.
Eu entendo o ponto, mas acho que a revolução tecnológica aumentará a eficácia do agente de campo, na medida em que ele pode se comunicar com mais agilidade com a base. Ela não vai tornar dispensável a ação individual e pessoal, que é insubstituível.
Folha - O Itamaraty é considerado como uma das poucas instituições que o Brasil criou. Há quem fale que o Exército, a Igreja e o Itamaraty são as três únicas instituições brasileiras. O sr. concorda com isso? O que diferencia o Itamaraty?
Flecha de Lima - Eu acho que o Itamaraty tem um corpo de pessoal muito qualificado, um amálgama de tradições comuns que facilita o entendimento, um padrão de atuação profissional comum e uma certa coesão entre seus participantes, até mesmo pelo tipo de recrutamento que faz de seu pessoal. Eu acho que essa vinculação à tradição tem sido um ponto muito importante e, já dizia o nosso saudoso Silveira (Antonio Francisco Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exteriores no governo Ernesto Geisel, entre 1974 e 1979) que a melhor tradição do Itamaraty é saber se renovar. Nós temos tido uma admirável capacidade de nos adaptar aos desafios modernos.
Inclusive, o Itamaraty tem sido pioneiro em incorporar no elenco das prioridades nacionais grandes temas, como o conceito de desenvolvimento econômico, a importância do comércio internacional e agora da área de ciência e tecnologia, que –eu acho– será o grande desafio para o Brasil. Nossa economia é complexa, a qualidade de nossas demandas é muito alta. É na área de ciência e tecnologia que nós mais podemos aproveitar as experiências já acumuladas por outros países. Com os EUA, este tema tem dimensão prioritária.
Conseguimos atualizar o acordo de ciência e tecnologia, que foi assinado no começo deste ano, e temos que arrematar o conjunto de medidas necessárias para o Brasil poder ter uma cooperação mais intensa nessa área. A única barreira para isso é a questão da propriedade intelectual. Uma vez resolvido isso, vamos ter um fluxo tremendo de colaboração.
Folha - Como o Itamaraty consegue sobreviver aos embates ideológicos internos, passar como se fosse superior à estrutura do governo? Os governos mudam, mas o Itamaraty continua como se fosse um organismo independente.
Flecha de Lima - Isso tem a ver primeiro com a nossa estrutura, que é fechada, no sentido de que as funções no Itamaraty, exceto as de ministro de Estado, são privativas de diplomatas. É um sistema fechado, mas democrático, porque todo esse pessoal foi recrutado por concurso. Em segundo lugar, com a nossa clara noção de que o funcionário do Itamaraty serve ao Estado, não à facção política dominante.
O presidente eleito costumava dizer que o órgão que mais inspirava a experiência parlamentarista era o Itamaraty, porque nós trabalhamos como no sistema inglês, em que os órgãos do Estado são permanentes e orientados por seus superiores políticos segundo a determinação do partido dominante. Nós conseguimos nos ajustar aos rumos da orientação política sem nos envolver nas querelas partidárias.
Folha - Com quem surgiu esse conceito?
Flecha de Lima - Eu diria que o grande profissionalizador do Itamaraty foi o Barão de Rio Branco. Ele assegurou uma continuidade na gestão do Itamaraty, tendo sido ministro por 12 anos, e ele conseguiu inculcar essa noção de que o servidor do ministério serve ao Estado. Talvez até pela sua formação européia, embora um dos pontos cardeais de sua política fosse a boa relação com os EUA.
Folha - Como essa relação com os EUA vai se desenvolver na sua opinião? Parece que este é um momento particularmente bom. Aquele elogio do presidente Clinton ao Brasil no domingo foi uma coisa que não se ouvia há muito tempo.
Flecha de Lima - Inclusive esse elogio foi espontâneo, dito numa coletiva de imprensa. Eu acho que essa declaração do presidente Clinton é completamente diferente de outra do passado, a do presidente Nixon de que "para onde o Brasil se inclinar, se inclinará a América Latina". Aquela do presidente Nixon foi feita num contexto bilateral, numa recepção que ele oferecia ao presidente brasileiro.
Outra diferença é que o ambiente democrático na América Latina hoje pressupõe que não haja lugar para atitudes hegemônicas ou exclusivistas, que pareciam implícitas naquela declaração do presidente Nixon. Com o grau de confiança que se conseguiu criar entre os países da América Latina, essa declaração do presidente Clinton só pode ser vista favoravelmente pelos outros países da área.
Folha - Mas como o sr. acha que vão se desenvolver as relações com os EUA? É evidente que os conflitos não acabaram. Podem até se ampliar com o aumento dos interesses comerciais dos dois países pelo mundo.
Flecha de Lima - É normal o conflito. Veja, por exemplo, países que têm relações tão próximas quanto Canadá e EUA ou EUA e Inglaterra. Uma série de diferenças entre eles tem ocorrido. Quanto mais democrático, mais aberto, for o ambiente, mais controvérsia existirá porque as opiniões de segmentos de pessoas tenderão a ganhar corpo.
Folha - E do ponto de vista ideológico? De que maneira o sr. acha que o Itamaraty vai se orientar neste início de século?
Flecha de Lima - Até mesmo como fruto desse grande profissionalismo, o Itamaraty vai refletir a prioridade nacional. O Itamaraty é acusado de ser uma casa muito fechada e isolada da sociedade, mas reiteradamente a nossa política externa tem sido ponto de consenso em diferentes governos. Só não foi quando tomou matiz ideológico muito acentuado.
Em geral, a gente tem essa capacidade de perceber os rumos da sociedade brasileira e procurado atuar dentro da orientação que cabe exclusivamente ao presidente da República. Mas naquilo que é o conjunto doutrinário do ministério, o Itamaraty procura sempre incorporar os insumos que a sociedade oferece.
Folha - O presidente eleito Fernando Henrique Cardoso, em entrevista a esta mesma edição do caderno "Mais!", focaliza muito a questão da importância de o Itamaraty se abrir para a sociedade. O sr. também já falou disso. Do ponto de vista operacional, prático, de que forma o Itamaraty pode realizar essa abertura?
Flecha de Lima - Eu não gosto de falar do passado porque acho que a gente tem que ter sempre uma visão prospectiva. Mas, apenas para situar minha preocupação com esse tipo de assunto: quando eu era secretário-geral, consegui, graças ao apoio de importantes colegas, principalmente do embaixador Gelson Fonseca, colocar em funcionamento o Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais, o Ipri. Arranjamos uma boa sede e começamos a fazer uma série de seminários que, eu acho, marcaram uma inflexão importante no rumo de nossa atuação e método.
A própria reunião de Miami mereceu um seminário do Ipri, em agosto, que talvez não tenha sido muito percebido pela sociedade por causa da campanha eleitoral. Eu acho que com essa afirmação do presidente Fernando Henrique, a tendência será ampliar ainda mais esse tipo de atividade.
Mas eu acho que também a mídia brasileira deveria se interessar mais por política externa. Eu acho que o Itamaraty poderia criar condições para isso, inclusive oferecer bolsas para treinamento de jornalistas no campo das relações internacionais porque nós vamos precisar de recursos humanos capazes de contribuir para a percepção correta das relações internacionais pela sociedade e, para isso, a mídia tem condições únicas.

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