São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Nova ordem política traz o fim dos alinhamentos ideológicos

JOSÉ AUGUSTO GUILHON ALBUQUERQUE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A política externa brasileira encontra hoje uma situação extremamente favorável para a realização de seu objetivo estratégico permanente, que é a melhoria de nossa posição relativa de poder entre as demais potências. Para tanto, as tarefas centrais de nossa diplomacia são, no plano externo, redefinir nossa posição no mundo e, no plano doméstico, contribuir para o estabelecimento das condições mais favoráveis possíveis para o nosso comércio exterior e para o fluxo de investimentos em direção ao Brasil.
Isto exige a revisão de duas premissas atualmente em voga, que são: primeiro, a de que, como "global trader" –isto é, possuidor de um perfil de exportações mundialmente diversificado, que o exime de dependência comercial para com países ou regiões– o Brasil deveria manter um perfil de solitária altaneria, buscando um caminho próprio e alternativo nos foros multilaterais e nas relações bilaterais com todos os países; e segundo, a de que, sendo a ordem internacional emergente da Guerra Fria multipolar e de hegemonia compartilhada, o Brasil maximizaria suas vantagens explorando todas as alternativas possíveis ao antigo bloco ocidental sob hegemonia americana.
A condição de "global trader", que o Brasil compartilha com países como os Estados Unidos e o Japão, também compartilha a vulnerabilidade global desses países. Ameaças ao comércio e à paz nas diferentes regiões do mundo representam riscos para os quais um "global trader" precisa estar preparado. Entretanto, diferentemente dos Estados Unidos, do Japão e das principais potências européias, o Brasil não tem peso econômico suficiente para impor seus interesses em foros multilaterais ou para impor-se unilateralmente onde seu interesse esteja ameaçado, nem, como os Estados Unidos, dispõe de recursos militares para garantir-se contra tais ameaças.
Portanto, longe de representar um trunfo gratuito, a universalidade de nossos interesses econômicos no plano mundial, representa também um ônus com cujo preço não somos capazes, nem deveríamos estar dispostos a arcar sozinhos. Não é à toa que a única superpotência global tenta, por todos os meios, atrair a Europa e o Japão para contribuírem, não só com recursos materiais, mas também com decisão política e iniciativa militar, para a defesa conjunta de seus interesses na paz mundial.
Apesar de falar-se tanto em "nichos" e "janelas de oportunidade", há lugar cada vez menos para "caronas" na nova ordem que se anuncia. Como ator global na economia, os interesses nacionais tendem a identificar-se cada vez mais com os dos países que, a exemplo do Japão, da Alemanha, e, não há como negá-lo, dos Estados Unidos, têm, na manutenção da paz mundial, no respeito a regras abertas de comércio, na adoção de regras universais de propriedade industrial, na igualdade de acesso aos mercados domésticos, tudo a ganhar.
Isto não significa alinhamento, como veremos adiante, mas certamente também não significa apostar na solidão altaneira, nem muito menos em tornar-nos porta-vozes dos fracos e oprimidos do Sul numa hipotética e inútil cruzada contra o Norte, em nome de ideologias tão peremptas como a Guerra Fria.
Quando a realidade do mundo sofre transformações bruscas, a inércia do pensamento continua olhando-o com olhos do passado. No início, sequer percebe que o mundo mudou. Quando se torna difícil recusar a realidade da mudança, o pensamento conservador tenta interpretá-la com a ajuda das categorias do passado.
Assim, quando a reação soviética tentou, num golpe militar, reverter o processo de transição, foi saudada pela vanguarda da ciência proletária no Brasil como uma revolução redentora e genuinamente comprometida com os interesses universais da humanidade. Agora que o fim da Guerra Fria se tornou irrecusável, o pensamento conservador tenta captar a nova ordem como desordem, à busca de pólos alternativos e disputas hegemônicas que não estão lá.
Ao contrário, só é possível reconhecer as mudanças nas relações internacionais entendendo que a nova ordem pós-Guerra Fria em gestação é uma ordem "despolarizada" e com "hegemonia dissociada". Isto é, o desaparecimento de um dos pólos desfaz a polaridade, e embora os Estados Unidos permaneçam como referência global, não constituem um pólo ou bloco em nenhum sentido da palavra. Por outro lado, os demais centros de referência existentes, a Alemanha e o Japão, não são nem pretendem ser pólos alternativos aos Estados Unidos, nem no sentido político, nem no sentido militar, e nem sequer, estritamente falando, no de blocos econômicos excludentes.
A noção de dissociação hegemônica se faz necessária justamente para compreender que os países que disputam com os Estados Unidos a vanguarda da competitividade não dispõem da capacidade de iniciativa política e de decisão militar para disputar-lhe a hegemonia. Por outro lado, a supremacia política e militar americana não somente está dissociada de sua antiga supremacia econômica, mas constitui também um óbice para sua retomada.
Como venho sugerindo nesta Folha desde a eleição do atual presidente Clinton, e se evidencia cada vez mais nas antinomias por ele enfrentadas, os Estados Unidos têm diante de si um dilema real: não possuem mais condições econômicas para enfrentar unilateralmente seus compromissos internacionais sem empreender um custoso ajuste econômico interno e, ao mesmo tempo, a pressão doméstica e internacional para envolvê-los em situações percebidas como ameaças externas restringe significativamente sua margem de manobra para empreender o ajuste interno. Ou seja, o país está condenado a decifrar suas contradições internas e a ser devorado por sua vulnerabilidade externa.
Dessa dupla condição de despolarização e hegemonia dissociada decorre o fim dos alinhamentos permanentes e ideológicos. O mundo passa a organizar-se não mais em pólos ou blocos alternativos, mas em redes concomitantes de cooperação, rivalidade e conflito, formando coalizões de geometria variável.
É nesse mundo que o Brasil deve afirmar-se positivamente, e não na obediência a um princípio de não-alinhamento que, como o princípio simétrico do alinhamento automático, já não tem sentido no pós-Guerra Fria. Nem muito menos na busca de uma hegemonia alternativa que não está em pauta. Em vez de fazermos da rivalidade com os Estados Unidos uma prática reiterada de atrito que contamina o que pode haver de cooperação: cooperar sempre que possível, rivalizar quanto necessário, e enfrentar quando inevitável.

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