São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Um mínimo de coragem

Há um escândalo sob o qual pode ser soterrada a cidadania: a crise social. Da mortalidade infantil à criminalidade galopante, passando pela desnutrição, pelo subemprego e pela economia informal, multiplicam-se os "brasis" que vivem, e muito mal, à margem do Brasil.
A proposta de um programa de garantia de renda mínima, já aprovado no Senado e contando com a simpatia de membros da equipe econômica, como Pérsio Arida, apresenta-se como alternativa ao modelo viciado de assistencialismo estatal. Em vez de manter o Estado na sua função assistencial de oferecer bens e serviços de primeira necessidade, o programa garantiria diretamente aos mais carentes uma renda mínima. Poder-se-ia tentar aliviar a crise social e ao mesmo tempo desmontar o aparato burocrático que, hoje, é parte da crise.
A idéia é engenhosa e, vale ressaltar, tem recebido apoio de técnicos e economistas das mais variadas orientações. Milton Friedman já se posicionou em favor de esquemas como esse. No Congresso, a iniciativa partiu do senador Eduardo Suplicy (PT-SP). A idéia coloca na mesma trincheira os defensores da lógica do mercado e os mais atentos às consequências perversas do desenvolvimento econômico.
As dificuldades desse projeto, entretanto, não podem ser menosprezadas, a começar pelo desafio de ao mesmo tempo desativar um e construir outro aparato institucional e burocrático. Há principalmente dificuldades de natureza orçamentária. Estudo publicado recentemente pelo Ipea alerta para o fato de que, mesmo abrindo mão de todos os programas sociais do governo federal, não seria ainda possível amealhar os recursos necessários.
São considerações que não chegam a inviabilizar a proposta, mas indicam a enormidade do desafio. Não basta rearranjar recursos no Orçamento, seria preciso implementar uma autêntica revolução de prioridades, colocando em primeiro plano o ataque frontal à miséria absoluta. Institucionalmente, seria necessário e desejável que todas as esferas de governo assumissem o compromisso com o financiamento e a operacionalização do programa.
O desafio de incorporar os milhões de miseráveis ao mercado e à cidadania aumenta dia a dia. O colapso das políticas assistenciais tradicionais é evidente. Engordam a burocracia, a corrupção e o desperdício, pouco contribuindo para melhorar a sorte dos desvalidos.
O Estado e os governantes sempre prometem e simulam máximo empenho. Mas falta vigor, e coragem, para desmontar o aparato estatal viciado que atende cada vez a menos gente, com uma ineficiência a cada dia maior.

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