São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Os oitis do bulevar

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – O Rio agora tem cheiro de pólvora. Há tiros, balas perdidas e remessas de drogas que precisam ser anunciadas com fogos de artifício. Uns pelos outros, tudo é pólvora. Mas o Rio tem outros cheiros, menos efêmeros, mais fundos.
A começar pelo litoral: cheiro de ostras e mariscos, de areia salgada e quente, cheiro de mar com suas florestas submersas e menstruadas. Cheiro que o vento traz, sobretudo à tarde, depois do muito sol.
Nem só de mar e do cheiro de mar vive o Rio. Afinal, o mesmo cheiro de maresia, de âncoras enferrujadas e barcos apodrecidos eu já senti em Marina Grande, ali em Capri, diante daquele mar cujas sereias obrigaram Ulisses a se amarrar ao mastro da sua jangada. Em algumas praias do Nordeste, também, e em Cuba, no areal de Guanabacoa.
Mas há um cheiro que só o Rio tem, só ele percebe. Não sei se foi Noel Rosa ou Orestes Barbosa –dois cariocas, por sinal– que falaram nele num samba antigo: os oitis do bulevar. Para quem não sabe, temos um bairro que muitos consideram o mais típico da cidade. Começou a nascer no final do Império, quando São Cristóvão ficou pequeno para abrigar a nobreza que rodeava o trono. Deram-lhe o nome de princesa: Isabel. As outras ruas também receberam nomes da corte: conde disso, visconde daquilo.
A praça principal é dedicada a Drummond, não ao poeta mas ao barão que inventou o jogo do bicho. O Jardim Zoológico ficava na Visconde de Santa Isabel esquina com Barão do Bom Retiro –tudo fidalguia, tudo cinco estrelas no complicado Gotha nacional.
A rua principal de Vila Isabel foi chamada de Boulevard 28 de Setembro, data de imperial evento, a Lei do Ventre Livre, ninguém mais nasceria com grilhões. O ventre negro que tanto saciou o furor do galego não mais produziria carne escrava.
Com o tempo, o Boulevar virou bulevar, os oitis ali plantados cresceram e ficaram. Não se pode mudar a massa de sangue, palmeira do Mangue não vive na areia de Copacabana. Os oitis do bulevar cavaram raízes profundas no chão da cidade. E o cheiro dos oitis –cheiro verde, um pouco empoeirado– impregnou a alma do carioca. É o cheiro do seu gosto, herança de nobreza modesta e extinta.

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