São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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O povão, o Tom e a Justiça

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

A absolvição do ex-presidente e vários de seus auxiliares pelo Supremo Tribunal Federal na mesma semana em que morreu Antonio Carlos Jobim só pode nos levar a dizer que, embora tecnicamente atada às notas da partitura, a execução da peça soou como "fora de tom".
Os juízes poderão argumentar que na música também é assim. Quando o copista escreve uma nota errada, a tendência dos músicos é a de tocar como lêem, assim como a tendência do público é a de repudiar a dissonância indevida. O povão não gosta de quem desafina.
Para os que levam à risca o conteúdo do ditado segundo o qual "a voz do povo é a voz de Deus" a absolvição do ex-presidente foi inadmissível. Basta ver as pesquisas. É bem provável que assim também pense a maioria dos senhores ministros. Eles devem estar lamentando, no refúgio de sua intimidade, a ausência da prova que era tão importante para a consecução de seus objetivos.
A democracia é assim mesmo. Estamos diante de um caso em que os desejos do povo e a vontade dos julgadores foram simultaneamente contrariados pela fragilidade da técnica. "Não se pode condenar quando não há provas". Ninguém discute esse princípio assim como ninguém questiona a decisão daquela corte.
Apesar de todas essas ressalvas, fica difícil conciliar o sono com a inesperada sentença. Afinal, os bons músicos –os que entendem bem de harmonia– jamais chegam a tocar uma nota erroneamente grafada depois do primeiro ensaio. Eles sentem no coração e na alma o acorde que melhor se encaixa naquela peça e acabam tocando o que é certo e o que o público espera. Ah! Que saudades do Tom...
Parece que direito tem pouco a ver com música. Eu, como engenheiro metalurgista, não deveria me meter em tais assuntos. Na minha profissão também há certos dogmas. Se a bauxita e a soda cáustica não entram na quantidade certa, o óxido de alumínio não sai, pois o processo age sob a mais absoluta precisão.
Mas juiz não é máquina. Tribunal não é britador de minérios. Auto de processo não é programa de computador. Sempre me lembro das palavras do meu saudoso professor Fitterer, chefe do departamento de cálculo da Colorado School of Mines, onde estudei: "Na hora do aperto, em lugar de usar a alta matemática, procure usar o bom senso –the good common sense". Será que isso não deveria valer também para a justiça?

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