São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 1994
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Paisagem útil

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

Uma desconcertante mudança de escala alterou a paisagem: a monumental beleza pétrea, que dominava elegante e imponentemente a porta do país, ali não estava mais.

Morreu o Pão de Açúcar. A pedra altiva e soberana, poesia de cada dia, que de tão presente já havia transformado sua extraordinária existência em natureza de sempre. Ali estava, ali sempre esteve, ali permaneceria.
Mas na quinta-feira, 8, a surpresa tomou conta do Rio e do Brasil: a cidade e o país viram-se, de uma hora para outra, sem seu símbolo maior, que o próprio mundo já aprendera a admirar. Uma desconcertante mudança de escala alterou a paisagem: a monumental beleza pétrea, que dominava elegante e imponentemente a porta do país, ali não estava mais. Tom Jobim estava morto.
Com ele, por um instante, a paisagem útil de um Brasil elegante e inventivo, calmo e sorridente, exuberante e otimista foi varrida do mapa. Um Brasil que parecia querer entrar no mundo pelas alamedas da frente. Brasil do cinema novo, poesia concreta, neoconcretismo, bossa nova, João Cabral, Pelé, Niemeyer e Brasília. Brasil luminoso e corajoso, seguro de sua originalidade criativa e da generosidade de seu futuro.
Brasil que não aconteceu. Que não foi capaz de perceber sob o brilho ofuscante do belo do presente a face monstruosa do feio do futuro. Dele Chico Buarque despediu-se emblematicamente no filme de Carlos Diegues. A última ficha caiu. Mas ainda assim, ali estava o Pão de Açúcar a mostrar que daquela rèverie tropical otimista e futurista não se havia perdido ainda o fio.
Tom Jobim representava para todos a atualização de um sonho. Por ele passavam as águas melhores do país: o rio do modernismo, as fontes da cultura popular, as correntezas da vanguarda, os afluentes da internacionalização sem cópia. Criador de um universal brasileiro límpido e cristalino, ele fez o fácil do difícil.
No dia seguinte, eu vi o Brasil na TV: gente de todos os tipos nas ruas, sorrindo, chorando, acenando.
Uma bandeira no barraco da Mangueira. Um lenço no apartamento da zona sul. E uma flauta no cemitério, de onde podia-se ver, ao fundo, que ele ainda estava ali, em esplendor, sob o sol. O Pão de Açúcar não morreu. Continuará desafinando e desafiando a inútil paisagem dos imbecis.

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