São Paulo, segunda-feira, 19 de dezembro de 1994
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João Gilberto inventa seus precursores

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

O cantor e violonista baiano João Gilberto faz música pura em seu CD "João Gilberto ao Vivo", que acaba de sair pela Sony.
O disco foi gravado na noite de 13 de abril último, no show único que deu no Palace em São Paulo durante a série Heineken Concerts. É o segundo trabalho integralmente ao vivo do cantor. Ele gravou em 1981 pela Warner o álbum duplo "Ao Vivo em Montreux". Em 43 anos de carreira, João lançou dez títulos de estúdio.
Por acaso, o disco chega às lojas durante o luto dos brasileiros pela morte de Tom Jobim. Tom foi o compositor que mais marcou as abordagens de João Gilberto. Das 18 faixas do CD, oito são de autoria de Tom, duas de Dorival Caymmi, uma de Ary Barroso, uma de Custódio Mesquita e uma de Haroldo Barbosa, justamente os compositores que forneceram o modelo harmônico da bossa nova.
Como sempre, João inventa seus precursores e faz o papel de parteiro da consciência da MPB. As músicas de Tom –"Se Todos Fossem Iguais a Você", "Fotografia", "Meditação", "Corcovado" e outras– ganham um "pathos" melancólico, não só pela morte de Tom como principalmente pela voz cansada e maravilhosa de João.
Como produto, o novo disco decepciona. Não traz informações sobre data e local da gravação. Não inclui as letras da música, fotos do show ou um texto explicativo sobre o espetáculo. A única informação está na contracapa: "Gravado ao vivo no Heineken Concerts. Especial editado pela TV Cultura".
Outra falha está no corte. As músicas surgem abruptas, às vezes coladas, como se o produtor tivesse tentado subtrair a atmosfera que permeia cada canção, com direito a ruídos do público e microfonia. Fica artificial ouvir um João Gilberto atacando de chofre "Guacyra" (Hekel Tavares-Juracy Camargo) ou começando "Estate" (Bruno Martino-Bruno Bringhetti) com adiantamento de um milésimo de segundo.
João merecia outra emenda. Ele existe para mostrar como uma canção pode soar perfeita e sem marcas. Pesquisa na memória títulos desconhecidos e os elabora até chegar a um resultado de alta qualidade. Mede até os intervalos entre as músicas para envolver o público em zonas de suspense e relaxamento. O corte deveria ter sido mais cirúrgico para não matar a espontaneidade da cena.
Naquela noite de graça, o cantor interpretou 22 canções. Ficou de fora do disco, por exemplo, o samba-canção "Ai, Ioiô" (Henrique Vogeler-Luiz Peixoto-Marques Porto), cantado em dueto com Bebel Gilberto, um bom momento do espetáculo.
Em "Chega de Saudade", João falha a voz. Em algumas músicas, como "O Amor em Paz" (Tom- Vinicius de Moraes), ele faz ligações entre consoantes sibilantes que soam forçadas, fato que passou despercebido no show. João hipnotiza a platéia, de forma a ocultar seus quase inexistentes erros (normais em apresentações ao vivo).
Os erros vêm com a idade. Com ela também chegam as leituras ainda mais rigorosas. João toca as cordas mais sensíveis de cada canção para alterar sua estrutura.
O clássico "Fotografia", lançado em 1959 por Sylvia Telles, ganhou um andamento mais rápido. O fraseado de "Lá Vem a Baiana" (Dorival Caymmi), música lançada em 1947 por Caymmi e que caiu no esquecimento, recebe uma leveza sincopada inexistente no original.
A ourivesaria do harmonizador se faz sentir em "Se É por Falta de Adeus" (Tom Jobim-Dolores Duran), lançada por Sylvia Telles em 1957. João cria para ela acordes impensáveis em uma composição tradicionalista, da fase pré-bossa nova de Tom.
"Guacyra" recebe uma superposição de canto e acompanhamento em compassos distintos.
Apesar da produção ruim, a arte do intérprete prevalece.
(LAG)
Disco: João Gilberto ao Vivo
Edição: Ricardo Garcia, João Leopoldo e João Marcelo
Lançamento: Sony Music
Quanto: R$ 18 (o CD, em média)

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