São Paulo, quarta-feira, 21 de dezembro de 1994
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'Não odeio nem amo, sou livre', diz Dercy

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

Um escracho vale mil conceitos. A atriz Dercy Gonçalves, 87, acha engraçado que hoje seja "um exemplo de cultura", que receba prêmios e seja tida como patrimônio nacional. Isso não combina com sua vida de lutas e ofensas.
Para contar essa vida que ninguém iria contar, convocou a dramaturga Maria Adelaide Amaral para escrever "De Cabo a Rabo", suas memórias, e as lançou anteontem pela editora Globo.
Nesta entrevista concedida à Folha por telefone, define o livro como uma "história triste para rir" e a si mesma como "uma 'vamp' que não trepa". E avisa: não se queixa de nada nem de ninguém. "Eu sou gloriosa."

Folha - Você conta que faz análise há muitos anos. O seu livro também é uma análise?
Dercy Gonçcalves - Totalmente. Depois que fiz o livro, tirei conclusões sobre minha vida que não tinha tirado antes. A minha vida toda tive adjetivo. Isso confundiu muito minha cabeça. Eu não sabia se eu era aquilo que o adjetivo dizia ou a minha personalidade.
Eu agia errado muitas vezes, no impulso da agressão, porque eu recebia agressões. Me chamaram de "vasto mundo", de puta, de Theda Bara, de pimenta.
Eu me confundia, me ofendia, mas não dava o braço a torcer, queria dar a volta por cima –só que a manchinha roxa ficava.
Mas quando li "De Cabo a Rabo" concluí que sou uma vitória, uma grande vitória. Dei a volta por cima. Soube viver.
Folha - O que é saber viver?
Dercy - Olha, eu não tenho doença, não tenho dores, não tenho saudade de nada nem de ninguém, não tenho ódio, não tenho amor, nunca fui apaixonada. Eu sou livre. Não tem outra igual a mim. Ninguém tem mais moral que eu. E não falo para me acomodar: eu sou mesmo livre.
Folha - O livro muda algumas impressões que se têm da Dercy. Por exemplo, a de que ela não é disciplinada, não tem técnica. Você se inspirou em alguém, em termos de técnica?
Dercy - Não, sempre tirei tudo da cabeça. Nunca tive ninguém para me proteger, me ensinar.
Eu gostava das atrizes do teatro de revista, a Itália Fausta, a Alda Garrido. A Alda Garrido era muito boa, mas fazia o tipo caipira. Eu nunca fiz esse tipo, sempre fiz a brejeira, a esperta safada. Era como a Theda Bara, uma "vamp", mas uma "vamp" sem trepar.
Folha - Você conta aquele episódio em que fez uma ponta numa peça cheia de atores famosos, era para fazer a cena muda e na hora soltou uma piada. Isso é técnica?
Dercy - Claro que é! Sempre fui muito esperta, e o que conta no teatro é o público, a reação do público. E eu era estrela também! Aquilo era muito pouco para mim. Eu tive a maldade da caixinha.
Folha - Você fala também do teatro mais sério, feito por atores como Procópio Ferreira, Dulcina de Morais. Você nunca sentiu inveja deles, vontade de fazer o que eles faziam?
Dercy - Era um teatro bom, eram as altas comédias. Mas nunca quis fazer, eles eram eles. Um pouco de inveja a gente sempre tem. É que numa época só valia aquele teatro, que era importante.
Procópio Ferreira, para mim, até hoje é o maior, todo mundo é cópia dele. E Dulcina foi uma grande atriz que fez sucesso sem mídia, sem seguir a agenda de ninguém. O máximo, porra!
Folha - O que você espera do livro?
Dercy - Nada. Achei que fosse comprar um carro com o livro, mas não vou poder comprar nem uma bicicleta. Não sabia dessa sacanagem das editoras –quem escreve o livro fica só com 10%.
Só quis plantar minha árvore. Meu livro é uma história triste para rir. Hoje as comediantes têm muito mais chances, podem falar palavrão à vontade. A minha luta foi para nascer a criança. Tenho muito orgulho. Eu sou gloriosa.

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