São Paulo, quarta-feira, 21 de dezembro de 1994
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Livro do papa evidencia crise da Igreja Católica

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O livro do papa João Paulo 2º convive na lista dos best sellers ao lado dos de Paulo Coelho, dos de Lair Ribeiro, dos que falam de anjos e duendes.
"Cruzando o Limiar da Esperança" (ed. Francisco Alves) contrasta muito, todavia, com os demais produtos à disposição de quem busca conforto espiritual e distrações para as dores da alma. É um livro mais difícil e pesado, quase inacessível na sua carga de citações teológico-filosóficas e nos rodeios de argumentação.
Trata-se de uma longa resposta às 31 perguntas que o jornalista italiano Vittorio Messori enviou ao papa por escrito.
"Existe verdadeiramente um Deus?" "Por que, com tantos horrores neste mundo, Deus não se mostra mais claramente?" "Ele precisava mesmo ter mandado seu Filho para morrer na Cruz?" "Havendo tantas religiões, como afirmar que a católica é a única verdadeira?"
Dúvidas que o jornalista expressa, digamos, de coração aberto, com respeitoso senso de "provocação", como ele próprio diz. As questões são honestas, e dificilmente alguém, mesmo católico, pode deixar de fazê-las num mundo marcado pelo pensamento científico, pela velocidade da informação, pelos recuos da própria igreja em face dos valores da razão e da tolerância intelectual.
As respostas de João Paulo 2º são ao mesmo tempo previsíveis e decepcionantes. Tentam menos persuadir o leitor do que reafirmar os dogmas católicos. Não sei se são capazes de conquistar qualquer alma "desgarrada". O papa prega aos convertidos. Ou melhor: àqueles que, considerando-se católicos, de algum modo sentem a insuficiência de sua própria religião em face do apelo de outras técnicas de satisfação pessoal e de fantasia administrada.
Revelação
Por que, pergunta o jornalista Massori, não poderíamos considerar Jesus como um sábio entre outros, a exemplo de Buda ou Sócrates? O papa responde: "Se fosse apenas um 'iluminado' como Buda, sem dúvida não seria o que é. Ele é o único mediador entre Deus e os homens. É Mediador pelo fato de ser Deus-Homem." Como João Paulo 2º "prova" isso? Citando São Paulo, o concílio de Nicéia, São Lucas.
As coisas se reduzem ao apelo a uma "verdade revelada", a Revelação foi feita, e só podemos acreditar.
Por que Deus está tão afastado do mundo onde tantos males ocorrem? Não, Deus não está afastado do mundo, tanto que enviou seu Filho para nos salvar. Bem, se acreditamos nisso, nenhuma dúvida é possível, e as perguntas do jornalista não têm sentido, já que eram expressão de uma dúvida.
O livro do papa nos deixa, assim, na mesma –na mesma dúvida ou na mesma fé–, uma vez que seus argumentos não são racionais, mas sim de autoridade. "É verdadeiro porque está na Bíblia, e tal encíclica, tal concílio confirmam." Ou seja, "é verdade porque digo que é verdade".
O valor de persuasão racional de tais argumentos é certamente nulo. Não há como discuti-los, pois precisamente refutam qualquer discussão proposta. Interessa mais saber, a esta altura do século 20, a função que um livro como o do papa pode ter.
É uma função diferente da dos pregadores da TV Record, das supostas revelações sobre anjos ou duendes ou discos voadores ou sacis-pererês, dos conselhos práticos do dr. Lair Ribeiro.
Misticismo
Se estes livros populares, os nossos "misticismos" e ajudas ocupam o vazio prático deixado pelo catolicismo, o papa certamente não pode dizer que a fé no catolicismo vai te deixar mais rico, mais saudável, mais famoso. Não pode apelar para o sucesso terreno, material. Nem mesmo à alegria infantil de topar com gnomos, fadas e dragões entre o jogo do Palmeiras e a pizza do domingo à noite.
Numa sociedade atravessada pela busca do contentamento material –categoria a que mesmo aparições concretas de duendes pertencem–, o livro do papa é menos atraente do que outros.
Reflete, talvez, uma crise complicada na Igreja Católica. É-lhe preciso reafirmar todos os dogmas –uma vez que a hierarquia, a disciplina da organização dependem disso. Mas o peso de 2000 anos de argumentação teológica, de sutilezas e derrotas (Galileu, por exemplo), torna-se difícil de carregar.
O auto-interesse em que hoje investe Lair Ribeiro era, antigamente, uma arma em favor do dogma católico. Pois a igreja recorria ao medo do Inferno. Ponto este –o Inferno– que João Paulo 2º é forçado, com alguma má vontade, a relativizar (págs. 170-174). Nem se fale das opiniões da igreja sobre pílula, casamento etc., que, na prática, só lhe servem para perder fiéis.
O afastamento da Igreja Católica frente aos interesses de seus próprio público torna-se, assim, questão difícil de resolver. Nem a esquerdização anterior nem o conservadorismo atual ajudam. Está ameaçada por dissensões internas e por inconvincentes esforços de "ecumenismo" e "tolerância". Como conciliar essas coisas, se a primeira obriga a reafirmar os dogmas, a segunda, a relativizá-los? A igreja fica dependendo, assim, das intervenções do papa.
João Paulo 2º recorre a viagens e comícios de massa, e agora a este livro, para se fazer presente no mundo, com sua simpatia pessoal. Aliás, ele não é tão simpático assim.

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