São Paulo, domingo, 25 de dezembro de 1994
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Vida e morte de Jesus na mídia moderna

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fiquei a pensar como seria noticiada a vida e morte de Cristo pelo jornalismo de hoje. O dia libera a imaginação atemporal, dando atualidade a um debate sobre as responsabilidades da imprensa, conforme fez esta Folha, em editorial publicado durante a semana.
Primeira constatação: o noticiário jornalístico da capital romana não daria uma só linha na primeira página.
O repórter que descobrisse, no pregador, temas para uma pauta, conseguiria cinco linhas de espaço em uma coluna de página interna, frustrando o direito à informação, inconfundível com o direito da informação.
Se não fosse assim, a poderosa contribuição da mídia para o aprimoramento das instituições e garantia das minorias teria mudado a história.
Compreenda-se: os meios de comunicação social também se guiam por índices de audiência e de circulação. Não veriam porque destacar o dissidente de uma religião que nada tinha a ver com os muitos deuses dos titulares do poder. Dissidente esse cuja pregação se desenvolvia num canto perdido do império romano, em meio de gente ignorante, sem destaque sócio-econômico.
Talvez encontrasse espaço no agitado noticiário das diligências policiais provocadas pelos fariseus ou em programas televisivos que buscam coisas fantásticas para divulgar. O dissidente fotografava bem, era orador brilhante. Mas, mesmo assim, não teria mais que uns poucos segundos na telinha.
Televisão é concessão administrativa. Depende do governo. Impõe cautela no noticiário que envolva a ordem constituída, que Jesus desafiava em sua oratória vigorosa.
A cobertura surgiria, quando muito, nos cadernos regionais da mídia impressa e nos programas de geração local, no rádio e na televisão, pois o dissidente não tinha o charme de figuras amadas pelo "establishment", dos heróis da intelectualidade festiva, cujas falhas humanas são cuidadosamente esquecidas.
Mesmo nesse perfil restrito, é possível que os interesses contrariados se mobilizassem contra o estranho rebelde que atraía multidões. Seria fácil alterar o sentido de suas palavras. Para registrar a distinção entre dar a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus, imagino a manchete: "Jesus desafia o poder do imperador". A boataria correria fácil. "Jesus pode ser homossexual", sugeriria outro título, publicando a declaração dada por uma mulher (não identificada), de que o dissidente se recusara a deitar com ela. "Pode ser" é a forma da notícia que permite injúrias, sem garantir o direito do ofendido contra o autor delas.
Contudo, é possível admitir que um êmulo municipal de Peter Arnett transmitisse o julgamento ao vivo, mostrando a multidão a favor de Barrabás. O clamor público surgiria em cores, sem que o turbilhão permitisse avaliar e criticar, na devida perspectiva, a poderosa influência dos fariseus sobre a multidão. Inexistente o juízo crítico, os telespectadores estariam convencidos de que viram o fato, independentemente da descrição jornalística: a vontade do povo quis a morte do pregador e a liberdade do criminoso.
Os órgãos mais beneficiados pelas verbas públicas logo tratariam de recordar velhas dúvidas de José, pai do nazareno, sobre a fidelidade de sua mulher, ao vê-la grávida, sem que a houvesse possuído. Envolvido com a mídia moderna, Jesus ou conseguiria salvar-se e espalhar rapidamente sua fé ou, talvez, nem sequer chegasse, vivo, aos 33 anos.

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