São Paulo, quinta-feira, 29 de dezembro de 1994
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Clássicos heroificam cidadão americano

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Juram que foi pura casualidade a chegada às nossas locadoras de "Os Melhores Anos de Nossas Vidas" (The Best Years of Our Lives, lançamento Concorde/Tocantins), de William Wyler, e a volta de "A Felicidade Não se Compra" (It's a Wonderful Life, relançado pela Opção/Continental), de Frank Capra. Mas é bom que todos saibam que esses dois filmes disputam há 48 anos um renhido Fla-Flu.
Rodados ao mesmo tempo (primavera-verão de 1946), na Califórnia (o primeiro na RKO e na cidade de Encino, o segundo na cidade de Chino e nos estúdios de Samuel Goldwyn), ambos se passam numa fictícia cidade do interior dos EUA, heroificam o cidadão médio americano e se esforçam por restaurar a "face humana" do capitalismo. Outro ponto em comum: os dois mais prestigiados cineastas americanos da época estavam fazendo sua "rentrée" em Hollywood. Wyler e Capra haviam passado a guerra rodando documentários para as Forças Armadas e estavam secos por um projeto de impacto. Wyler teve mais sorte: pegou um tema atualíssimo (a dura readaptacão dos veteranos de guerra à vida doméstica) e, em parte por conta disso, disparou na bilheteria e conquistou sete Oscars (mais um especial para o ator Harold Russell).
Capra achou que havia encontrado o roteiro de sua vida. De fato havia, mas só o futuro lhe daria razão. Em 1946 os americanos se mostraram um tanto arredios a uma história mais afinada com o "mood" macambúzio da Depressão do que com o ressabiado otimismo do pós-guerra. E assim, "A Felicidade...", além de uma carreira comercial inexpressiva, saiu liso da festa dos Oscars.
Com o passar dos anos, porém, o austero drama cívico de Wyler foi decaindo no conceito da crítica e do público em geral, ao contrário do seu rival, há tempos alçado à categoria das obras-primas indiscutíveis. De tanto ser exibido na TV americana nas noites de Natal, "A Felicidade Não se Compra" tornou-se o equivalente cinematográfico da canção "White Christmas". Todo mundo na América conhece de cor e salteado a saga de George Bailey, o suicida encarnado por James Stewart e salvo do tresloucado gesto por um anjo da guarda, aparentemente enviado por Papai Noel. Qualquer semelhança com o anjo de "Na Roda da Fortuna", dos irmãos Coen, não é mera coincidência.
Equilibrando-se entre a candura de Norman Rockwell e a melancolia de Edward Hopper, Capra fez de "A Felicidade Não se Compra" uma irresistível alegoria sobre a crucificação e a redenção, que se esmera na originalidade de arrancar lágrimas do espectador justo nas cenas em que a alegria arrebata os seus personagens. É uma das criações mais sombrias do diretor e também, paradoxalmente, uma das mais otimistas e euforizantes. Ao menos na tela, Capra acreditava como ninguém na pujança do indivíduo e na grandeza da solidariedade.
"Não há um só plano que não seja cinema puro", escreveu André Bazin a respeito de "Os Melhores Anos de Nossas Vidas". O mestre da melhor crítica francesa admirava o estilo ascético e suntuosamente eloquente de Wyler, ao qual dedicou um ensaio até hoje insuperado, se bem que alheio a certos aspectos do filme, valorizados por outros analistas de menor envergadura. Sua ambiguidade ideológica –em determinada cena Fredric March põe em dúvida os valores do "big business" para, em outra, exaltá-los– incomodou diversos críticos, não necessariamente de esquerda, que acusaram o roteiro de Robert E. Sherwood de ser uma ode ao capitalismo e à tradicional família americana.
Talvez fosse politicamente útil, no imediato pós-guerra, acreditar nos sustentáculos da sociedade americana e procurar humanizá-los. Por vezes, "Os Melhores Anos de Nossas Vidas" soa quase como um documentário de propaganda sobre, entre outras coisas, a falta que faz uma educação voltada para os tempos de paz. O personagem de Dana Andrews volta ao lar como herói de guerra, que nos campos de batalha sabia fazer de tudo, mas sem habilitação profissional para se reinserir num mercado de trabalho onde jogar bombas de aviões nenhuma serventia tem.
Discussões desse teor se esfumam no ar diante da incrível meticulosidade narrativa de Wyler. O que mais sobressai em "Os Melhores Anos de Nossas Vidas" é a maneira como seu diretor lida visualmente com tensões e conflitos dramáticos, depurando-os (ou "democratizando-os", como preferia dizer Bazin) com a inestimável profundidade focal cultivada por Gregg Toland. Poucas vezes Wyler levou tão a sério o seu apego a uma certa concepção de realismo (seus atores foram obrigados a usar suas próprias roupas diante das câmeras) e sustou com tamanha felicidade os seus arroubos emocionais. Com perdão da palavra, um clássico.

Vídeo: Os Melhores Anos de Nossas Vidas
Diretor: William Wyler
Elenco: Myrna Loy, Fredric March, Dana Andrews, Virginia Mayo
Distribuição: Concorde/Tocantins (tel. 011/857-7553)
Vídeo: A Felicidade Não se Compra
Direção: Frank Capra
Elenco: James Stewart, Donna Reed
Distribuição: Opção/Continental (tel. 011/284-9479)

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