São Paulo, quarta-feira, 2 de fevereiro de 1994
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Scorsese cai na armadilha da adaptação

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tudo é muito bonito em "A Época da Inocência", de Martin Scorsese. Como em tantos outros filmes de reconstituição de época (aqui se trata da elite nova-iorquina em 1870), tem-se a impressão de que um dos principais objetivos do diretor é usar a história como pretexto para apresentar belas roupas, cenários luxuosos, lindas mulheres em lágrimas.
Há toda uma coreografia de jantares, festas, vestidos de seda, tílburis, estatuetas e charutos. O resultado não é tão vazio quanto parece, mas é mesmo assim ambíguo.
Sem dúvida, há um drama sentimental em curso. O jovem Newland Archer (Daniel Day-Lewis) acaba de se casar com a linda May Welland (Winona Ryder) mas se apaixona pela prima desta, a misteriosa, independente e europeizada Ellen Olenska (Michelle Pfeiffer, em ótimo trabalho, mas não bastante exótica para o papel).
O problema do filme talvez se resuma no seguinte. O roteiro, adaptação fiel de um romance de Edith Wharton (1862-1937) desenvolve-se para provar o peso das convenções da classe alta: o surdo, quase imperceptível combate que se trava em defesa do casamento burguês e contra a paixão Newland/Olenska.
Mas a cenografia, a filmagem, o produto apresentado para o espectador, deliciam-se no luxo dos salões. Winona Ryder, aliás, está muito mais desejável do que Michelle Pfeiffer. Tanto esmero na reconstituição de época tende a tirar um pouco a acidez da história. O risco é consumir-se o filme como um bombom meio-amargo, embrulhado esplendidamente, para uso das pessoas de bom gosto. Algo de supérfluo, de frívolo, vence as simpatias que possamos ter pelos personagens.
Cometi o erro clássico de ler o livro antes de ver o filme. "A Era da Inocência" foi publicado pelas Ediouro no ano passado. É um ótimo romance. Mas, como se sabe, as adaptações cinematográficas de uma obra literária sempre decepcionam –mesmo quando, ou até porque, são escruplulosamente fiéis ao texto original.
Enumero algumas coisas que se perdem na transposição cinematográfica.
Em primeiro lugar, as descrições. Eis como Edith Wharton retrata uma personagem secundária: "o imenso acúmulo de gordura que se abatera sobre ela na meia-idade, como uma torrente de lava cobre uma cidade condenada, transformara-a, de mulher rechonchudinha (...) que era, em algo vasto e augusto como um fenômeno natural (...) uma cascata de papadas moles descia até as vertiginosas profundezas de um peito ainda alvo (...) em torno e abaixo, ondas e mais ondas de seda negra transbordavam de uma espaçosa poltrona, com duas minúsculas mãos brancas pousadas como gaivotas na superfície do mar revolto."
No filme, o que resta deste ser fantástico, liquefeito e vago? A figura de uma mulher gorda. Claro, o cenário, a fisionomia, as roupas, a atuação da atriz não foram previstas por Edith Wharton. Ganhamos esses detalhes vendo o filme. O problema das "adaptações" é que raras vezes acrescentam informação ao que foi dito no romance: buscam apenas reiterar, "realizar" o texto.
É assim que o aspecto mais exterior, mais superficial da história assume, no cinema, o primeiro plano. A descrição minuciosa dos pratos de um banquete surge automaticamente, no romance, sob um registro irônico –é como se a narradora fingisse que todos esses detalhes eram absolutamente essenciais– mas só para os personagens. Na adaptação cinematográfica, a ironia tende a se perder: o espectador espanta-se com a perfeição da cena, sem atentar para o que havia de ridículo, ou de docemente ridicularizado, na descrição por escrito.
Sem dúvida, a arte dos atores pode suprir muitas das explicações do livro acerca das sutilezas psicológicas dos personagens –e mesmo enriquecer determinada situação dramática.
A dificuldade, aqui, recai em Daniel Day-Lewis, muito insosso e contido. Mas não é propriamente culpa dele. Mesmo no romance de Edith Wharton, o protagonista é fraco, inconvincente demais.
Romance e filme se envolvem, na verdade, num dilema difícil de resolver. Trata-se de contar a história de um rapaz convencional, que se apaixona por uma moça anticonvencional, e termina vencido pelas convenções, dada a sua própria fraqueza de personalidade. Como torná-lo interessante? Como fazer dele, digamos, uma vítima, um herói, um espécime memorável?
A cilada da sofisticação
A impressão que se tem é que tanto a romancista quanto diretor e ator hesitam entre fazer de Newland "mais do que ele é" (e nesse caso a história teria de ser diferente) e "menos do que ele é" (mas nesse caso a coisa seria desinteressante demais).

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