São Paulo, quinta-feira, 3 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Lean traduz épico intimista de Dickens

HAMILTON ROSA JUNIOR
FREE-LANCE PARA A FOLHA

O cinema clássico pede passagem e amplia as bordas do vídeo por obra e graça do imperador da tela larga, David Lean (1908- 1991). "Grandes Esperanças", uma das obras mais poderosas do diretor é também uma das menos celebradas pelo público brasileiro, chega às locadoras.
O espectador agradece. Nem a Cinemateca Brasileira tinha esse clássico em acervo. A maioria do público que se lembra do filme, assistiu na época em que "A Ponte do Rio Kwai" (1957) e "Lawrence da Arábia (1962) eram novidades. Até hoje quando se fala em Lean, a lembrança é destas duas superproduções (é impossível esquecer também "Dr. Jivago"). Mas no meio de tanto artifício, de cenas grandiloquentes envolvendo multidões, Lean era um diretor intimista.
Se a fase épica ofuscou a alma introspectiva de Lean, o brilho artístico de "Grandes Esperanças" proporciona sua ressurreição. O filme é uma aula de adaptação literária. Baseado num calhamaço do escritor Charles Dickens ("Oliver Twist"), conserva os pontos e vírgulas da história, mas é essencialmente cinematográfico. Mantém seu status de a melhor transposição já feita sobre um livro de Dickens.
Poucos vasculharam os temores e descobertas do mundo infantil como esse escritor britânico. Lean traduz essa descoberta magistralmente na abertura de seu filme. São cerca de 2 minutos de imagens sem qualquer trilha sonora. O garoto Pip (Anthony Wagner) atravessa o horizonte para visitar o túmulo da mãe num cemitério e dá de encontro com um homem sinistro (Finlay Curly). Seu grito é o primeiro som que se ouve. Lembra o suspiro de um recém-nascido.
A partir daí, o diretor estabelece os contornos de uma narrativa marcada por uma câmera sempre à altura do olhar de uma criança. Pip é um órfão que leva uma vida miserável nos pântanos de Kent. É chamado para servir de companhia à sobrinha solitária (Jean Simmons, então com 17 anos) da madame Havisham (Martita Hunt), uma velha milionária e excêntrica. O garoto se apaixona. Mas o namoro não se concretiza. A condição de plebeu conspira contra as esperanças do jovem.
Isso até aparecer um misterioso benfeitor que resolve dar um banho de loja em Pip e transformá-lo em seu herdeiro. O garoto vai para Londres estudar e só volta como o encorpado e aristocrático John Mills.
Lean conduz com sobriedade o drama romântico. Seu interesse maior é captar as impressões que seu protagonista tem sobre o ambiente. Para ter o controle sobre a iluminação, rodou toda a história dentro de estúdios de Denham. Para ampliar os interiores, sobretudo da mansão de Madam Havisham, utilizou lentes de 50 e 75 mm (quando o usual eram as de dez e 35 mm). Pelo trabalho, o cinegrafista Guy Green ganhou o Oscar. A direção de arte também foi premiada e Lean teve sua primeira indicação para a estatueta como diretor.
Seu classicismo nunca seria admirado, por exemplo, pela turminha da "Cahiers du Cinéma". Truffaut chegava a babar de raiva cada vez que ouvia seu nome. Mas está para nascer um diretor capaz de conciliar a alma humana à grandeza épica.

Vídeo: Grandes Esperanças
ireção: David Lean
Elenco: John Mills, Alec Guinness, Jean Simmons
Produção: Inglaterra, 1947
Lançamento: Concorde (tel. 011/857-7553)

Texto Anterior: Macaco se engasga com o Jornal da Tosse!
Próximo Texto: Alternativas para quem odeia Carnaval
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.