São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Prisão civil para"sonegadores": nova arbitrariedade?

LUIZ FLÁVIO GOMES

Prisão civil para "sonegadores": nova arbitrariedade?
A última novidade "policialesca" anunciada pelo Ministério da Fazenda consiste na edição de uma Medida Provisória (MP) que viria permitir a "prisão civil" dos empresários que cobram tributos dos consumidores e empregados mas não repassam ao Tesouro. Seriam presos a título de "depositários infiéis" (FOLHA de 11/1, p. 1-7). Estão querendo "endurecer" ainda mais o sistema contra os "sonegadores", mas parece que não atentaram que podem estar transformando um caso simples de apropriaçãõ indébita (que é crime) em mera desobediência civil. O mais grave, no entanto, é a arbitrariedade e a patente inconstitucionalidade que está embutida na iniciativa.
Não entrarei no mérito da proposta para discutir se tais empresários devem ou não ficar sujeitos à prisão. Gostaria apenas de enfocar o aspecto formal e, por várias razões, concluir que nenhuma prisão (ainda que seja civil) pode ser criada por MP. Nosso ordenamento jurídico não autoriza semelhante ato despótico.
A liberdade individual, ninguém duvida, constitui direito fundamental do cidadão. Pouco importa se a prisão anunciada tem caráter "penal" ou "civil". O que não é lícito ignorar é que é uma prisão. E qualquer restrição à liberdade só pode ser concebida por lei formal de acordo com o devido procedimento legislativo.
O presidente da República, em ato exclusivo seu, não pode permitir a supressão da liberdade humana, a não ser que se queira implantar o Direito do Terror, típico dos regimes nazistas. Medidas autoritárias pouco ajudam para a construção do Estado Democrático de Direito tão sonhado pelo Constituinte de 88.
O estatuto das liberdades é matéria reservada exclusivamente ao legislador, único representante da comunidade inteira. O princípio da legalidade, nos dias atuais, possui também como eixo a fundamentação democrático-representativa. Quando se trata de invadir a liberdade individual é de suma importância que todos os partidos e as minorias participem previamente do ato legislativo a ser editado. Nem o Executivo nem o Judiciário pode estabelecer qualquer norma que afete direito fundamental. É ato exclusivo do detentor da soberania popular.
Na medida anunciada, ademais, não está presente o requisito da "urgência" (tanto que faz três meses que estão discutindo o assunto internamente). Seu cárater provisório, de outra parte, é absolutamente incompatível com os direitos fundamentais, que exigem sempre certeza e segurança.
O que o Executivo está pretendendo não encontra apoio no ordenamento jurídico. Qualquer juiz, razoável e constitucionalmente informado, certamente não cumprirá tal MP. O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, irá julgá-la inconstitucional.
Seria muito bom ao povo brasileiro e às instituições se o Executivo, definitivamente, entendesse que se é a autoridade não a verdade que faz a lei ("Auctoritas non veritas facit legem"), é a verdade não a autoridade que faz o julgamento ("Veritas non auctoritas facit iudicium").

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