São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Dupla transição e a conclusão repugnante

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O passado ninguém escolhe. Imagine um país que carrega nas costas décadas de autoritarismo na política e décadas de intervencionismo estatal na economia. Suponha que, um belo dia, os líderes deste país tomam a decisão de partir para a dupla transição: uma transição política para a democracia e uma transição econômica para o mercado. Pergunta-se: o que deveria vir antes? Primeiro a transição política e depois a econômica, ou vice-versa? Qual dessas duas sequências é aquela com maior probabilidade de sucesso na dupla transição?
O ideal, é claro, seria partir direto para a democracia e deixar a transição econômica para depois. A instauração da democracia –entenda aqui, de forma simplificada, como a escolha e renovação periódica dos governantes pelo voto secreto e universal– pode ser feita em curto espaço de tempo e sem ferir grandes interesses. A mudança econômica, ao contrário, é por natureza lenta e dolorosa. Por que não fazer de uma vez a grande festa democrática e deixar o sangue, suor e lágrimas da transição econômica para depois?
Esta, repito, seria a sequência ideal. Seria delicioso, sem dúvida, habitar um mundo no qual a tarefa de desfazer o imbróglio de décadas de fechamento e dirigismo econômico não fosse em nada dificultada pela realização da transição para a democracia antes da transição para o mercado. Se o custo de colocar a transição política na frente da econômica fosse nulo, então esta sequência seria claramente superior à outra e não haveria muito o que discutir. A ninguém ocorreria defender (ou contestar) a tese de que dá mais certo abrir antes a economia do que a política.
Na prática, contudo, a resposta não é tão simples. A suspeita é que o custo de se fazer a transição política antes da econômica não seja nulo. Quer dizer: a instauração da democracia antes da realização das reformas econômicas tende a dificultar e retardar o processo de mudança no campo da economia – a conquista da estabilidade monetária, a criação de uma disciplina de mercado para o setor privado e a retomada do crescimento. Pior, o descontrole fiscal e o caos inflacionário resultantes deste impasse podem até mesmo comprometer as bases do regime democrático e provocar um lamentável retrocesso político.
Por que o custo da transição política antes da econômica não é nulo? A raiz do problema é que, num ambiente democrático, os grupos de interesse ligados ao passado encontram melhores condições de resistir à mudança e bloquear as reformas que lhes privariam dos privilégios conquistados ao abrigo do velho modelo. No sistema democrático, o governo tende a ser mais vulnerável à pressão dos interesses particulares e corporativistas existentes no cenário político, o que naturalmente reduz a sua capacidade para desmontar a cadeia de compromissos e distorções herdados do passado.
Mudar, dói. Os custos são pagos à vista, os benefícios só aparecem a prazo. É compreensível que políticos que precisam cuidar da reeleição relutem em arcar com o ônus do custo à vista. Fora isso, qualquer mudança econômica tem ganhadores e perdedores. Se existe, por exemplo, um monopólio estatal ou uma reserva de mercado, isso traz benefícios para alguns e prejuízos para muitos. Há, entretanto, uma terrível assimetria na representação dos interesses em jogo.
Se o governo decidir acabar com o monopólio ou a reserva, os perdedores estão aí: são gente de carne e osso, com família, empregos e interesses a preservar. Nada mais natural, portanto, que eles estejam representados numa democracia. E os ganhadores potenciais da mudança? Estes, embora em maior número do que os primeiros, ninguém sabe de antemão quem serão.
Quem defende os empresários que não existem –ou não crescem– porque a máquina estatal corrupta e ineficiente sufoca as suas atividades? Quem defende os trabalhadores e desempregados cujos empregos deixam de ser criados porque um monopólio estatal ou uma reserva de mercado impede a competição, aumenta a ineficiência geral da economia e reduz as exportações do país?
Ao contrário dos perdedores, os ganhadores da mudança são abstratos e hipotéticos. Não podem sair às ruas protestando contra o estreitamento do seu horizonte empresarial ou a destruição dos seus empregos, pois ninguém sabe –nem eles próprios– quem são. É natural, portanto, que eles não estejam representados numa democracia. E como os ganhadores potenciais não têm como se fazer representar, os interesses concretos de poucos tendem a prevalecer sobre os interesses potenciais da maioria.
Nada disso significa, é bom frisar, que a transição econômica seja impossível num ambiente democrático –a conclusão repugnante. Portugal e Espanha na Europa e Bolívia e Argentina na América do Sul são bons exemplos de países que fizeram a transição para uma economia mais aberta e estável numa democracia. É preciso lembrar, contudo, que a formação do consenso em relação à necessidade de mudança nestes países foi ajudada por outros fatores –a perspectiva de ingresso na CEE no caso dos europeus e o trauma da hiperinflação no dos sul-americanos.
A democracia não é, portanto, incompatível com a transição econômica. O argumento é que ela tende a dificultar e retardar o processo. Chile, México, Coréia do Sul, China e Hungria são exemplos de países que avançaram com razoável sucesso na reforma de suas economias, antes de fazer a transição para a democracia. Em alguns casos –México e China em particular– a reforma política ficou muito para trás em relação à econômica. O massacre da Praça da Paz Celestial e a revolta de Chiapas mostram que este descompasso também gera terríveis problemas.
O passado ninguém escolhe. Uma vez instaurada a democracia, não há volta atrás. O melhor é que ela funcione e tenha condições de se consolidar e aperfeiçoar.
O custo de fazer a transição política antes da econômica infelizmente existe. Trata-se, porém, de algo administrável e que, se houver um mínimo de responsabilidade e bom-senso por parte dos políticos, pode ser perfeitamente assimilado pela sociedade. É a aliança entre a falta de escrúpulos morais de alguns e o obscurantismo ideológico de outros que ameaça minar as bases da democracia e dar à conclusão repugnante uma lamentável realidade prática.

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