São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Há algo de lógico nos desenhos animados

STEPHEN GOULD
DA "NEW SCIENTIST"

Há algo delógico nos desenhos animados
O tunelamento quântico é útil para o coelho Pernalonga sair de ciladas
A gravidade só age quando o Coiote se dá conta de que está no ar
O Coiote está perseguindo o Papaléguas num penhasco. Ele fica suspenso entre as nuvens, até perceber que não tem apoio para os pés; só então é que cai no chão. Nesse universo maluco, a gravidade só afeta quem tem consciência dela.
Durante uma cena caótica de perseguição num jardim, o gato Frajola leva um golpe dado com uma pá e seu rosto fica com o formato da pá. No mundo dos quadrinhos e dos desenhos animados, as formas se alteram com facilidade.
Por mais estranho que pareça, esses exemplos mostram que o mundo dos desenhos animados é mais real do que imaginamos. Novas análises revelam que estes fenômenos aparentemente loucos podem ser descritos por leis lógicas, semelhantes àquelas que regem nosso mundo.
Acontecimentos disparatados são coisas que não se limitam ao mundo dos quadrinhos. Frequentemente as leis que governam nosso próprio universo parecem ser contrárias ao bom senso.
A teoria quântica, por exemplo, oferece casos incontáveis de fenômenos que contrariam a intuição. Não estamos acostumados a eles porque ocorrem num universo infinitamente menor do que o nosso. Nos desenhos animados, esse universo minúsculo torna-se visível.
Tomemos o caso do coelho Pernalonga. Ele não tem dificuldade em abrir um túnel para sair de uma caçarola trancada a cadeado e colocada dentro de um forno selado. O que ele faz pode ser algo chamado de tunelamento quântico: partículas minúsculas, como elétrons, passam através de barreiras que de outro modo seriam impenetráveis.
Há também o Papaléguas - um especialista na dualidade de onda e partículas. Esta teoria afirma que os objetos no universo quântico podem se comportar como partículas –um rebatendo contra o outro– ou como ondas –um passando através do outro e combinando-se entre si. Apenas partículas muito pequenas, como elétrons e fótons, podem ter propriedades semelhantes às das ondas, e quanto mais energia possuem, maior é seu comprimento de onda. Seguindo essa lógica, os personagens de desenhos animados que têm muita energia também devem se comportar como ondas. Isto explica por que o Coiote nunca consegue agarrar o mais energético Papaléguas, que é mais semelhante a uma onda. De acordo com a teoria, o Papaléguas nunca pode ficar num só lugar o tempo suficiente para ser comido. Pela mesma razão, ele sempre passa ileso pelos artefatos da ACME Inc., engenhocas usadas pelo mais maciço porém muito menos energético Coiote.
A dualidade de onda e partículas também explica por que o rosto do gato Frajola assume o formato da pá, mas depois retoma seu formato normal. As ondas quânticas no universo dos desenhos animados se comportam como sólitons. Estas são ondas que se "recordam" de seu formato quando colidem e depois voltam à sua forma original –exatamente como os rostos dos personagens das histórias em quadrinhos.
Teoria da dinamite
Embora o universo dos desenhos animados pareça ser essencialmente quântico por natureza, os efeitos previstos pela teoria da relatividade de Einstein também podem ser observados. No mundo real, o tempo passa mais devagar para um objeto que viaja numa velocidade próxima à da luz, num efeito conhecido como dilatação temporal. Quando aceleradas quase até a velocidade da luz, partículas que têm prazo de vida naturalmente curto vivem por muito mais tempo. O mesmo efeito é observado nos desenhos animados, quando o pavio num bastão de dinamite queima mais devagar quando é passado rapidamente de Eufrazino Puxabriga para o Pernalonga. Quanto mais rapidamente se move, mais lentamente o pavio queima. A dinamite só explode quando está estacionária e o pavio queima normalmente.
O principal efeito explicado pela relatividade é a conversão de energia em matéria, que é demonstrada adequadamente quando Droopy é atingido por uma bigorna altamente carregada de energia, gerando pequenos pássaros e estrelas. A energia do impacto é convertida em matéria –passarinhos e estrelas– e depois reconvertida em energia quando os passarinhos e as estrelas desaparecem. Obviamente, os passarinhos e estrelas são produzidos porque são partículas fundamentais e, teoricamente, os impactos de energia maior deveriam produzir outras partículas.
A teoria da relatividade prevê vários outros efeitos para os personagens que viajam a velocidades próximas às da luz. O personagem deveria se encolher na direção do movimento, por exemplo, e sua massa deveria aumentar consideravelmente, mas há poucas evidências comprovando qualquer um destes efeitos. Ligeirinho não parece ficar esmagado ao longo da direção de seu movimento e sua massa também não aumenta, apesar da aceleração quase instantânea e da velocidade enorme. Evidentemente a velocidade da luz nos desenhos animados é tão alta que Ligeirinho e outros personagens jamais chegam a se deslocar com rapidez suficiente para produzirem estes efeitos.
Choque elétrico
As observações também oferecem evidências de alguns efeitos elétricos e magnéticos bastante estranhos. Por exemplo, na terra dos quadrinhos a eletricidade não procura materiais condutores e os circuitos não precisam ser completados. O gato Tom é eletrocutado apesar de não encostar no chão e armazena eletricidade suficiente para fazer acender uma lâmpada, alguns segundos mais tarde. Nesse universo maluco, a matéria consegue armazenar carga muito bem, propriedade que em nosso mundo é conhecida como capacitância.
As propriedades dos ímãs nos desenhos animados também são estranhas. Seus ímãs podem ser dirigidos numa direção e funcionam por grandes distâncias, enquanto os ímãs no mundo real operam por pequenas distâncias e em todas as direções. No mundo dos quadrinhos, um ímã em cima da Terra, projetado por um professor doido, é capaz de exercer uma força sobre um disco voador situado fora do Sistema Solar. Isto, mais o fato de que os ímãs podem ser ligados e desligados, pode ser explicado com base no pressuposto de que a energia nos desenhos animados estimula o ímã a produzir raios magnéticos poderosos. Em nosso mundo, o mesmo tipo de estímulo produz os lasers.
O fenômeno mais complicado a se explicar é a gravidade. No mundo real, todo objeto exerce uma atração gravitacional sobre os outros. Mas, nos desenhos animados, a levitação e a atração gravitacional retardada não podem ser explicadas apenas por forças atrativas. Em lugar disso é preciso propor uma teoria radical: de que a matéria causa atração gravitacional, mas que a energia causa repulsão.
Quando forças que se repelem –causadas pela energia– são iguais às forças que se atraem –causadas pela massa– o resultado é o equilíbrio gravitacional, ou seja, a levitação. Quando Coiote corre por cima de um penhasco, ele está em equilíbrio; a energia e a matéria produzem forças que se anulam uma à outra, e ele não cai. Mas quando ele pensa sobre a situação em que se encontra ele gasta energia, o equilíbrio muda e ele mergulha no chão.
Esta teoria não está completa, de forma alguma, e há várias coisas que ela não explica. Uma previsão embaraçosa é de que os personagens altamente carregados de energia jamais deveriam tocar no chão, porque a grande energia que possuem assegura que as forças que se repelem sempre sejam maiores do que a atração gravitacional. As evidências discordam abertamente desta previsão, de modo que é preciso estudar a questão mais detalhadamente.
Percebe-se que está vindo à tona uma verdadeira física do universo dos desenhos animados, mas que certas perguntas-chave continuam sem resposta. É possível que a cooperação com cientistas desse universo forneça algumas respostas, mas infelizmente as condições vigentes não parecem encorajar o espírito necessário de investigação científica. Infelizmente a única pergunta que até hoje se fez a um cientista desse universo foi "O que é que há, velhinho?"

Texto Anterior: Porco Gaguinho é o personagem mais antigo
Próximo Texto: Por que só as fêmeas do mosquito transmitem a malária?
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.