São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Velocidade tecnológica supera ser humano

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A DAVOS

Responda depressa, leitor: qual o problema que se conseguiu resolver com a invenção do mecanismo eletrônico de levantar e baixar os vidros dos automóveis? Nenhum, é óbvio, a não ser a eliminação do esforço físico de se fazer a mesma coisa acionando manualmente uma manivelinha.
A pergunta seguinte é óbvia: o que tem isso a ver com as discussões sobre a situação política, econômica e social do mundo, que se travaram durante uma semana na cidadezinha suíça de Davos, durante o Fórum Econômico Mundial, versão 94?
Tudo a ver, pelo menos na opinião dos filósofos presentes. Neil Postman, professor de Cultura e Comunicação da Universidade de Nova York (Costa Leste norte-americana), usou o exemplo do vidro eletrônico dos carros para demonstrar que a celebração da tecnologia, tão em moda no mundo de hoje, às vezes comemora inutilidades –ou, no mínimo, engenhocas que, se não inventadas, não fariam a menor diferença para o ser humano.
Consequência, apontada por um dos princípes da filosofia mundial, o francês Edgar Morin: "O grande problema para o século 21 é encontrar um antídoto para a velocidade de criação de tecnologia. É preciso regulamentar de alguma forma essa velocidade para que o ser humano possa ser capaz de parar para pensar em uma sociedade acelerada, com uma lógica de cronômetro".
Bobagem de filósofos? Não, a julgar pelos efeitos que a velocidade de mudança no mundo produz sobre a política, sobre a economia e, por extensão, sobre o estado de espírito dos seres humanos em todo o planeta.
Pegue-se a política. "Em todo o mundo democrático, principalmente na Europa, a política está organizada na base da polarização esquerda/direita. Essa polarização permanece o princípio central organizador da política –e tem sido assim por mais de um século, se não por mais tempo. Mas há crescente evidência nos últimos anos de que a eficiência dessa polarização, sua habilidade para analisar a sociedade, mobilizar pessoas e resolver os problemas, está em declínio", analisa Martin Jacques, fundador da Demos, um banco de cérebros sediado na capital britânica.
Consequência, sempre segundo Jacques: "Um novo ceticismo, mesmo desordem, reina no mundo democrático".
A análise teórica combina com a vida real: com raríssimas exceções, as eleições no mundo nos três ou quatro últimos anos conduziram inexoravelmente à derrota dos governos de turno. Só no G-7, o grupo dos sete países mais ricos do mundo, foram estraçalhados cinco governos. Um sexto, o alemão de Helmut Kohl, tende a perder nas eleições deste ano. E o sétimo, o britânico John Major, obteve, na mais recente pesquisa, apenas 13% de aprovação à sua gestão.
Mas e a sociedade? Responde Jean-Pascal Delamuraz, ex-presidente da Confederação Suíça e, hoje, ministro da Economia: "A globalização da economia mundial levanta um problema político: se a atividade econômica se entende como além das fronteiras nacionais, a soberania permanece entendida como inerente ao Estado nacional. Essa colisão de realidades econômicas como o sentimento político profundo de nossas populações é a essência do problema que evoquei ao dizer que nós não estávamos preparados para a globalização e suas consequências".
Menos preparados ainda estavam os assalariados para a devastação de postos de trabalho provocada em parte pela recessão e/ou pelo lento crescimento econômico dos últimos três anos, mas principalmente pela incessante evolução tecnológica. "O que se está assistindo não é simplesmente desemprego, mas a destruição de postos de trabalho", analisa o economista brasileiro Luiz Gonzaga Belluzzo, que acompanhou o Fórum Econômico Mundial.
Também nesse capítulo, como na organização política, está em andamento a derrubada de modelos muito antigos e, por isso, arraigados. Se, na política, o declínio é da secular polarização esquerda/direita, no trabalho é a queda da semana de cinco dias. "Durante décadas, um aspecto do trabalho, ao menos no mundo desenvolvido, mudou pouquíssimo: a extensão da semana de trabalho. Cinco dias, entre 35 e 40 horas. Mas a recessão na Europa levou muitos a questionar até isso. Na Alemanha, um acordo na Volkswagen levará a uma semana de quatro dias", diz carta do editor da revista "World Link", publicação do Fórum Econômico Mundial.
No Japão, idem. "O conceito de emprego para a vida toda está ameaçado agora e sujeito à revisão", diz Minoru Murofushi, presidente da Itochu Corporation, importante "trading" japonesa.
É natural, nesse cenário, que o mundo de hoje seja um mundo acima de tudo de perplexidades. Perplexidades que estão apenas no começo, como o indica a citada carta do editor de "World Link". Depois de lembrar que a moderna tecnologia está criando o chamado "telecommuting" (trabalhar em casa e ficar ligado ao local de emprego pelo computador), a carta diz: "Mesmo que não mais do que 20% da força de trabalho se torne 'telecommuter', o impacto nos escritórios e cidades será profundo".
Para voltar aos filósofos, o impacto, do ponto de vista deles, será mais do que profundo, vai ser mesmo devastador. "Quando o ser humano pode fazer operações bancárias de casa, pode fazer compras de casa, pode trabalhar em casa, a única coisa que o ser humano não pode fazer é ver outros seres humanos de casa", recalama o professor Neil Postman.

Texto Anterior: China deixa ideologia e planeja privatização
Próximo Texto: ONU restringe a sua missão na Somália
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.