São Paulo, domingo, 6 de fevereiro de 1994
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Rússia esconde o fantasma do facismo

JAMES A. BAKER 3º

Rússia esconde o fantasma do fascismo
Situação russa não deve fazer o Ocidente esquecer os riscos que enfrenta nos Bálcãs e na Europa Oriental
JAMES A. BAKER 3.º
Depois do avanço fascista e comunista verificado nas eleições russas de dezembro passado e da renúncia de importantes reformistas, os especialistas já estão perguntando: "Quem perdeu a Rússia?" Mas essa não é a pergunta certa.
Não é a pergunta certa pela seguinte razão: os interesses norte-americanos na reforma russa são parte integrante dos interesses mais amplos dos Estados Unidos numa Europa segura, democrática e próspera. Ao focalizar nossas atenções sobre Moscou em detrimento de nossos outros interesses, corremos o risco de deixarmos de consolidar as conquistas democráticas na Europa Central e Oriental.
O infortúnio que acometeu as reformas econômicas nos países antes situados atrás da Cortina de Ferro alimentou uma alarmante ascensão do nacionalismo rancoroso -talvez até mesmo do neofascismo. O pesadelo que os Estados Unidos e seus aliados precisam evitar é uma Europa fragmentada e fascista.
No entanto, a maioria dos observadores só prestou atenção às más notícias vindas de Moscou. Os dois grandes defensores das reformas, o primeiro-ministro, Iegor Gaidar, e o ministro das Finanças, Boris Fiodorov, renunciaram –e o segundo dirigiu críticas mordazes a Strobe Talbott, o "czar russo" do Departamento de Estado que, dentro em breve, será vice-secretário de Estado. Ao que parece, uma casta de "apparatchiks" assumiu o controle do país. Estes acontecimentos provocaram consternação nas capitais ocidentais, mas os comentários sobre a "perda" da Rússia são enganosos, pelo menos por duas razões.
Em primeiro lugar, não se "perdeu" a Rússia. Em termos microeconômicos, a situação econômica melhorou sob muitos aspectos de um ano para cá. Mais de 75% das microempresas e das lojas varejistas da Rússia se encontram em mãos de particulares. Mais de 25% da força de trabalho está empregada no setor privado.
Infelizmente, o crescimento do setor privado foi acompanhado por um aumento impressionante na criminalidade organizada -e violenta. A corrupção e o pagamento de propinas viraram instrumentos comerciais amplamente utilizados. Os reformistas, assim como os democratas em Washington, precisam começar a opor-se à criminalidade tanto quanto seus adversários se opõem.
O principal risco que se apresenta para as reformas está no front macroeconômico. Justamente agora os esforços de Fiodorov haviam começado a render frutos. A inflação estava caindo. Na verdade, o fator principal que impedia que se colocasse a inflação sob controle total era -e ainda é- o presidente do Banco Central, Viktor Geraschenko, um comunista renitente e adversário acirrado das reformas.
É por isso que essas renúncias são tão inquietantes. São os integrantes do gabinete que determinam a política nacional. Com a saída dos reformistas e sua substituição por "administradores vermelhos", sobraram poucas figuras nos altos escalões de Moscou -com exceção do próprio Boris Ieltsin- que tenham qualquer compromisso comprovado com as reformas. As renúncias lembram a de Eduard Chevardnadze ao cargo de ministro soviético das Relações Exteriores, em 1990. O presidente Mikhail Gorbatchov achou que poderia prosseguir com as reformas sem seu colega de confiança, mas aconteceu que a velha guarda tentou depô-lo num golpe.
Os avanços conseguidos pelo Partido Liberal Democrata de Vladimir Jirinovski -que não é liberal, nem democrático e nem sequer um verdadeiro partido- nas eleições de 12 de dezembro são uma das causas fundamentais de boa parte da confusão atualmente reinante na Rússia. Eles revelam a extensão da oposição popular ao programa de reformas econômicas de Ieltsin e a disposição popular em buscar soluções simplistas. No entanto, o povo russo também aprovou uma Constituição que concede poder real ao governo, não ao Parlamento. Não é inexato dizer que Boris Ieltsin tem em mãos os instrumentos necessários para acelerar as reformas. A verdadeira pergunta é se ele tem a disposição -e a equipe necessária- para fazê-lo.
Em segundo lugar, o Ocidente não pode "perder" a Rússia. A Rússia pode ser "perdida", mas apenas pelo povo russo e por seus líderes. A Rússia é uma nação de mais de 150 milhões de pessoas, que abrange 12 fusos horários. As grandes potências são "grandes" principalmente porque determinam seus próprios destinos. Em última análise, são as escolhas que os próprios russos fizerem que vão moldar seu futuro. Apenas eles podem perder uma nascente Rússia democrática para o fascismo ou para o comunismo.
O que o Ocidente pode perder, entretanto, é a oportunidade de remodelar a Europa. A influência ocidental sobre os acontecimentos na Rússia é pequena, mas nossa influência sobre os acontecimentos nas democracias emergentes da Europa Central e Oriental pode ser decisiva. Entretanto, os acontecimentos recentes na região não têm conduzido mais a reformas do que os acontecimentos em Moscou.
Em Belarus, o primeiro-ministro Stanislav Shushkevich, outro reformista engajado, foi derrubado pelo Parlamento por haver promovido as reformas de modo excessivamente agressivo e por não ter alinhado a política externa de Minsk com a de Moscou. Em Kiev, não está claro se o Parlamento irá apoiar integralmente o recente acordo nuclear tripartite. Isso, apesar da promessa do governo Clinton de dobrar a assistência concedida ao governo ucraniano, para que ele faça exatamente aquilo que já duas vezes nos prometeu que faria. Enquanto isso, a inflação já atingiu a marca dos 100% mensais na Ucrânia, efetivamente solapando a independência econômica da população. E nas recentes eleições na Criméia, um secessionista russo conseguiu 73% dos votos.
Mais a oeste, nos Bálcãs, a guerra continua -e em lugar de diminuir de intensidade, está aumentando. Os sérvios bósnios instituíram uma mobilização geral. Há informações de que tanto a Sérvia quanto a Croácia estão enviando unidades do Exército regular à Bósnia. Numa viagem a Belgrado na semana passada, Jirinovski vinculou esses acontecimentos quando afirmou: "A retirada acabou, estamos lançando uma ofensiva geral, que nossos inimigos nos temam... Que se contorçam em Paris, Londres, Washington e Tel Aviv".
A viagem de Jirinovski aos Bálcãs simboliza o perigo que confronta o Ocidente. Devemos levá-lo a sério -tanto pelo que ele diz, quanto por onde ele o diz.
Através de suas palavras, Jirinovski nos revela contra o quê ele é. Com exceção da "limpeza étnica" sérvia, não está claro o que defende. Ele é contra a democracia, contra o livre mercado, contra o Ocidente e contra os não-russos e não-brancos –dependendo da platéia que o escuta. A frustração com as perdas da Rússia é sua força motriz, assim como o ressentimento contra aqueles que alegadamente as causaram: os ocidentais, os capitalistas, os judeus.
Jirinovski é um fascista puro e simples. A nação é suprema; o indivíduo, subserviente. Para ele, ser russo é uma condição intrinsicamente boa. Ser qualquer outra coisa é uma condição intrinsicamente má –a não ser que, com objetivos táticos, ele queira unir os russos e os sérvios numa irmandade eslava ou os russos aos europeus e americanos brancos, contra os "negros".
Igualmente inquietantes são os lugares onde ele vem fazendo seus pronunciamentos. Na semana passada ele encontrou uma platéia receptiva na Sérvia. Ele e o homem-forte da Sérvia, Slobodan Milosevic, são sob muitos aspectos irmãos de alma. Ambos se alimentam de um hipernacionalismo que combina autoritarismo no interior do país com o desprezo por tudo o que é estrangeiro.
O perigo é que os Milosevic e Jirinovski continuem a pregar sua mensagem de intolerância e ódio, chegando até mesmo a conspirarem juntos, pressionando outros dirigentes a "defenderem" seus povos. Em pouco tempo, o etnocentrismo, e não a democracia, poderia se transformar no princípio organizador da região. A história nos diria que isso é provável.
Isso poderia levar às seguintes consequências: A Sérvia poderia estender sua limpeza étnica aos albaneses em Kossovo e Sandjak e aos húngaros em Vojvodina. Poderiam crescer as tensões entre a Grécia e a Albânia sobre os albaneses já expulsos da Grécia e os 60 mil a 300 mil gregos que vivem na Albânia. (O litígio já é tão grande que a Grécia e a Albânia sequer conseguem chegar a um acordo sobre o número verdadeiro.)
Essas tensões iriam provavelmente ter ecos na Turquia –onde haverá exortações pela defesa dos albaneses, em sua maioria muçulmanos, além das aproximadamente 800 mil pessoas etnicamente turcas que vivem na Bulgária. Os nacionalistas húngaros poderiam chegar ao poder, com base em promessas de proteger os mais de 4 milhões de húngaros étnicos que vivem em países vizinhos.
É claro que as tensões pesam pouco quando comparadas com os potenciais conflitos envolvendo os 25 milhões de russos que vivem no "exterior próximo". É evidente que os Bálcãs são um ponto explosivo. Mas também o são o Cazaquistão e o leste da Ucrânia -onde vivem muitos russos e onde ainda estão muitas armas nucleares.
Em suma, os interesses norte-americanos na Europa e na Eurásia abarcam mais do que quem faz o que a quem dentro dos muros do Kremlin. Nem todos os problemas na Europa podem ser resolvidos através da linha telefônica direta Moscou-Washington.
Nas próximas semanas, o presidente Bill Clinton e seus principais assessores precisam formular e responder cinco perguntas.
Primeiro: como pode o Ocidente conter o conflito nos Bálcãs e impedir que ele se transforme numa ampla guerra dos Bálcãs? O Ocidente pode não ser capaz de parar a guerra na Bósnia por um custo aceitável, mas, com decisão e previsão, pode impedir que outra guerra tenha início na Macedônia, na Albânia, na Hungria e em outros Estados vizinhos.
Segundo: como pode o Ocidente integrar aquelas democracias da Europa Central e Oriental que satisfazem critérios objetivos (por exemplo, a Polônia, a Hungria, a República Tcheca), para que se tornem membros integrais das instituições ocidentais? A Parceria pela Paz é uma fuga, uma maneira de desviar-se da questão, não uma resposta.
Terceiro: como podemos promover a independência dos Estados ex-soviéticos que não são russos e, ao mesmo tempo, trabalhar pela desnuclearização daqueles Estados? Clinton perdeu uma boa oportunidade de defender a democracia quando deixou de visitar o Quirguistão. Sob a liderança de Askar Akaiev, esse país está caminhando em direção à democracia e ao livre mercado e não fez promessas para depois rompê-las.
Quarto: o que pode ser feito para apoiar a democracia e o livre mercado na Rússia –agora que a maioria dos reformistas saiu do governo? Esperemos que o Ocidente não entre em pânico e corte a assistência aos reformistas nos níveis locais e no setor privado, que agora precisam desesperadamente de nossa ajuda.
Finalmente, o que Washington pode fazer para aumentar a coordenação e a cooperação entre o Ocidente e o próprio Ocidente? Se os Estados Unidos e seus aliados europeus ocidentais não conseguirem chegar a um acordo sobre uma trajetória a seguir, então uma Europa inteira e livre certamente se perderá para uma Europa fragmentada e fascista.
A pergunta, então, não será "Quem perdeu a Rússia?", mas "Quem perdeu a Europa?"

JAMES A. BAKER 3.º foi secretário de Estado dos EUA durante o governo de George Bush. Copyright Los Angeles Times Syndicate.

Tradução de Clara Allain

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