São Paulo, quarta-feira, 9 de fevereiro de 1994
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As salvaguardas nucleares

DIRCEU CARNEIRO

As posições do Executivo sobre as salvaguardas nucleares, ora apreciadas pela Comissão de Relações Exteriores do Senado, têm provocado polêmica na imprensa nacional, com pouca informação útil e esclarecedora à sociedade. O tema salvaguardas é complexo, exige da diplomacia negociações exaustivas em nível internacional. Diálogo, esclarecimento e decisão cuidadosa em nível interno.
As consequências da assinatura de tratados do tipo são, teoricamente, perenes na história de um país. Necessitam pois de reflexão, debate na sociedade e publicação das informações pelas autoridades. Em casos assim, o Legislativo digere toda essa elaboração, utilizando para isso o tempo político e social, para que ecoem todas as opiniões. O Legislativo tem legitimidade para assim proceder, é de sua natureza e de seu dever.
O Brasil não assinou e não vai assinar o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) por considerá-lo discriminatório e injusto. Mas, por outro lado, proibiu a construção da bomba atômica, pela Constituição, sendo, creio, o único país que assim procedeu. Mesmo assim a comunidade internacional, por conveniência, coloca o Brasil ao lado da Índia, Paquistão, Israel, que não assinaram o TNP porque possuem a bomba, e assim também nos crimina e dificulta o acesso a tecnologias sensíveis.
Para superar essa discriminação, Brasil e Argentina criaram a Agência Binacional de Controle e Contabilidade de Materiais Nucleares (Abacc), uma agência regional à semelhança da Euraton, da Comunidade Européia. A criação da Abacc e a assinatura do Acordo Quadripartite, entre Brasil, Argentina, Abacc e a Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), ameniza a pressão estrangeira e nos insere no contexto mundial.
Nesses acordos nos cabe oferecer garantias para as salvaguardas, mas neles também impedimos que a intromissão dos organismos estrangeiros, compostos por mais de 85 países e com interesses divergentes, acabem, amparados no recurso das "inspeções especiais", prejudicando o país. Isso porque esse instrumento pode ser utilizado como forma de pressão política em assuntos que podem nada ter a ver com energia nuclear. É o que queremos evitar, agora, analisando melhor os textos das salvaguardas.
Já equacionamos, por ora, dubiedades no texto dos Ajustes Subsidiários ao Acordo Quadripartite, de fiscalização da utilização da energia nuclear. Basta agora a sua aprovação pelo Senado, o que deve ocorrer sem dificuldades.
A adoção das salvaguardas pelo Brasil, aliás, já estava sinalizada ao mundo, o que torna um absurdo a notícia, dada na imprensa, para mim uma falsa notícia plantada pelo lobby, de que a Alemanha pretenda romper o acordo nuclear que mantém conosco e lutar contra nosso assento no Conselho de Segurança na ONU, caso não aprovemos o Quadripartite e o Tlatelolco.
Ora, nosso acordo com os alemães, independente, já contempla salvaguardas àquele país. Tlatelolco, um acordo regional, não lhes diz respeito. Já o Quadripartite é uma reivindicação de todo o mundo desenvolvido, cujo interesse, através da notícia da suposta ameaça alemã, parece ser o de nos pressionar, com a intenção de ter o Brasil como mercado cativo.
Há um problema básico hoje que necessita ser sanado antes de votá-las, sob pena de subtrairmos do país o princípio da soberania: uma emenda ao Tratado de Tlatelolco, de proscrição de armas atômicas na América Latina que choca-se com um dos objetivos pelos quais mais lutou o Brasil no Quadripartite, ou seja, impedir que sejam permitidas as inspeções especiais por denúncia em território nacional. A emenda permite justamente essas inspeções.
Por esse instrumento, técnicos da Aiea poderiam vir ao Brasil vistoriar qualquer instalação, declarada ou não à Aiea, e acabar se apoderando de informações industriais que podem servir para frear nosso desenvolvimento. Conhecendo nosso estágio em determinada pesquisa, as nações mais avançadas poderiam prejudicar o Brasil, deixando de repassar tecnologia que nos permitisse avançar e chegar a produzir os mesmos produtos que elas. Por interesses comerciais e outros, lutariam para manter a reserva mundial para seus produtos.
Essas preocupações, do interesse público nacional, têm orientado a Comissão de Relações Exteriores do Brasil na análise dessa questão. O primeiro resultado positivo dessa postura foi o Brasil ter conquistado a aprovação dos Ajustes Subsidiários antes mesmo da ratificação do Quadripartite, algo que rendeu ao Brasil reconhecidos e evidentes ganhos.
Outros pontos alcançados foram as declarações formais da Aiea e do Organismo para Proscrição de Armas Nucleares na América Latina (Opanal), ratificando a aplicabilidade dos ajustes subsidiários do Quadripartite ao de Tlatelolco. No texto de Tlatelolco, em contradição ao Quadripartite, essas inspeções são permitidas contra qualquer país sob suspeição. Após a Guerra do Golfo, esse instrumento transformou-se em perigoso expediente usado pela Aiea. Particularmente as inspeções por denúncia, inaceitáveis pelo Brasil.
A responsabilidade do Legislativo é alcançar o melhor para o Brasil. Não é o interesse de alguns funcionários do governo, que com competência exercem o lobby pela imprensa, que vai nos constranger a deliberar antes da matéria estar totalmente instruída. Não será entrave uma semana a mais ou a menos até a ratificação do tratado, já assinado, diga-se. Portanto, a posição do Brasil está mais que sinalizada à comunidade internacional, é um fato consumado. Ratificar e ajustar são apenas detalhes nesse conjunto.

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