São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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As raízes do nosso carnaval constitucional

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se promulgar constituições gerasse empregos e contribuísse para melhorar o bem-estar material de um povo, a América Latina seria o continente mais próspero do planeta. Os Estados Unidos (que teimam em manter a mesma constituição desde 1787), a Inglaterra (que sequer possui constituição escrita) e o Japão (que até hoje nem se deu ao trabalho de rever a Carta imposta no final da guerra pelas forças de ocupação norte-americanas) seriam países miseráveis.
Keith Rosen, pesquisador da Universidade de Miami, fez uma conta simples e descobriu um fato curioso. Quantas novas constituições já foram promulgadas na América Latina desde o início do século 19, isto é, a partir do momento em que os diversos países da região foram se tornando independentes?
O total obtido foi 253 até 1990, ou seja, uma média de 12,65 por país. De lá para cá, o número já aumentou. A Colômbia promulgou mais uma; Fujimori levou os peruanos às urnas para "referendar" a sua; e o Brasil deu início à revisão da Carta de 1988.
Entre os países do continente, os recordistas na matéria –com mais de 20 constituições cada um– são República Dominicana, Venezuela e Haiti. Como afirma o historiador mexicano Enrique Krause, comentando a "constitucionalite" latina, "quanto mais caótico o país, mais ardente parece ser o interesse em compor novos códigos fundamentais de princípios".
O Brasil, que com a revisão em curso está embarcando na nona Carta em pouco mais de um século e meio de independência, está abaixo da média do continente. Mas nem por isso há motivo para desânimo. Em matéria de detalhismo e desatino constitucional, nossa Carta de 88 é séria candidata ao título mundial.
O anedotário é riquíssimo e está correndo o mundo. Três exemplos colhidos ao acaso: nossa atual Constituição garante o direito dos idosos de todo o país à vida e à saúde, quebrando assim o odioso monopólio da Academia Brasileira de Letras de conferir o privilégio da imortalidade a seus membros; ela estabelece a quantia a ser paga a um fotógrafo free lance (como informa o último relatório da "Economist" sobre a América Latina); e ela obriga o Ministério da Agricultura a gastar uma proporção fixa das verbas destinadas à irrigação com projetos de irrigação na região Nordeste (50% foi a taxa que os constituintes, depois de cálculos exaustivos, julgaram razoável).
O Brasil, é verdade, não está sozinho. Um colega guatemalteco me disse que na constituição de seu país existe um preceito obrigando os homens a serem fraternais entre si. Um membro italiano do parlamento europeu, revoltado com a falta de bidês no norte da Europa, está propondo uma lei pela qual a Comissão Européia obrigaria todos os países-membros a instalar bidês em hotéis e sanitários públicos (os números citados pelo parlamentar são alarmantes: enquanto a Itália produz 1,5 milhões de bidês por ano, para a alegria das italianas, a produção inglesa não alcança 50 mil unidades...). A diferença, no caso da Constituição de 88, é o acúmulo inédito de aberrações deste tipo.
Como explicar a "constitucionalite" latino-americana e, em particular, este verdadeiro cortiço gótico de anseios desencontrados que é a atual Constituição brasileira? As causas do fenômeno parecem ser basicamente duas –um problema de ordem conceitual e outro de natureza processual.
As constituições estáveis e respeitadas do mundo são aquelas que existem apenas para proteger o cidadão comum dos desmandos do Estado e da violência dos seus semelhantes, interferindo o mínimo possível na liberdade de ação do indivíduo. Na América Latina, ao contrário, prevalece a concepção prescritivista de constituição –a noção de que com "decretos, alvarás e ordens régias" é possível resolver qualquer problema, do ensino básico à agricultura nordestina, passando por petróleo, previdência e sistema tributário.
O resultado disso é transformar a Carta constitucional numa somatória de aspirações desencontradas. Em vez de servir como o arcabouço mínimo necessário para a convivência pacífica e civilizada entre os membros da comunidade, ela se torna um projeto idealizado de nação –uma utopia na qual o país se representa a si próprio como sendo melhor do que é e assim se "obriga" a um futuro mais promissor. Mas como nem todos os bons sentimentos dos constituintes poderão ser realizados, na prática a pior consequência é a rápida desmoralização da Carta e o desrespeito generalizado aos seus preceitos.
O outro problema básico é de ordem processual. Não há nada mais perturbador do ponto de vista da qualidade do processo de elaboração constitucional do que a intromissão de motivações eleitoreiras e imediatistas.
O processo constitucional deve ser protegido ao máximo do processo normal de disputa partidária-eleitoral. O procedimento correto, no caso, é a convocação de uma assembléia constituinte, eleita com base no princípio do "um homem, um voto", e com mandato específico para a elaboração da nova Carta. Idealmente, os participantes da constituinte deveriam ficar impedidos de se candidatar a cargos eletivos por um prazo de pelo menos cinco anos após a promulgação da Constituição. Isso ajudaria a afastar o perigo de que viessem a submeter o processo constitucional a interesses alheios à função.
Lamentavelmente, o processo constitucional que culminou na Carta de 88 desrespeitou de forma crassa todos esses cuidados. O Congresso constituinte foi eleito na sombra de uma eleição majoritária para governador, com base num critério de reprentação dos Estados na Câmara totalmente espúria e herdado do regime militar, e com mandato pleno para continuar politicando em Brasília após a promulgação da Carta. Deu no que deu. O quinto ano para Sarney foi apenas a chave de ouro do primeiro turno da folia.
O último episódio desse carnaval constitucional é a confusão armada em torno do Fundo Social de Emergência. A coisa chegou a tal ponto no Brasil que política de estabilização virou tema de revisão constitucional. Os adeptos da "promulgação salame" discordam dos que entendem que a revisão só ocorre uma vez e é para toda a eternidade... O Congresso revisor, por sua vez, pára por 12 dias no Carnaval, que é para ir esquentando no samba.

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