São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 1994
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Estupra mas não mata

LUÍS NASSIF

O sujeito começa a estuprar uma velhinha em plena avenida Paulista, à luz do meio-dia. Algumas pessoas mais sensíveis levam a mão à boca e exclamam: "Que horror!" e prosseguem a caminhada, como se não tivessem nada a ver com isso.
De certo modo, é o que ocorre hoje em dia com a licitação de lixo em São Paulo. Se não for contida pelas cidadania, a administração Paulo Maluf –através do secretário de Obras, Reynaldo de Barros– estupra e mata à luz do dia.
Os fatos:
Uma batida da Receita, em uma empresa quase fantasma, permite localizar o sistema de caixinha política de Paulo Maluf. Os financiadores são grandes empreiteiras de obras públicas que prestam serviços à prefeitura.
O prefeito Paulo Maluf tinha razão em criticar o caráter farisaico das denúncias, já que todos os grandes partidos políticos recorrem a sistemas semelhantes.
Mas logo em seguida, através do secretário de Obras, Reynaldo de Barros, a administração disparou série de editais para obras e serviços, com claros indícios de manipulação, atropelando normas moralizadoras da nova Lei de Licitações.
Este atrevimento foi perpetrado nas barbas da Comissão Parlamentar de Inquérito do Orçamento, que escancarou para todo o país o enorme poder de corrupção das grandes empreiteiras.
E a maior parte dos possíveis beneficiários são empresas que acabaram de ser apontadas como financiadoras da caixinha do prefeito.
Manual da Manipulação
A prefeitura de São Paulo recorreu a dois instrumentos conhecidos do manual de manipulação das licitações –o preço mínimo e o critério técnico– abolidos pela nova lei.
Em tese, define–se um preço mínimo suficientemente alto para coibir a competição pelo critério de preço e permitir uma margem folgada que garanta o lucro da vencedora e a caixinha do político. Depois, usa-se o critério técnico para previamente definir o vencedor. Como, em geral, trabalham-se com informações fechadas ficava difícil questionar os critérios para a definição do preço mínimo.
O que o secretário de Obras, Reynaldo de Barros, não esperava é que a contestação partisse de uma empresa que já presta serviços à prefeitura –a SPL Construtora e Pavimentadora Ltda., empresa da cidade de Sorocaba (SP) que venceu uma licitação ainda na gestão da prefeita Luíza Erundina, rompendo com a cartelização até então existente no setor.
A empresa questionou os critérios técnicos e demonstrou que poderia oferecer serviços abaixo do preço mínimo estipulado pelo edital. Seus dados não podiam ser questionados, pois baseados na medição real de serviços já prestados.
A reação da administração do prefeito Paulo Maluf foi adotar represálias visando sufocar financeiramente a empresa, a fim de obrigá–la a desistir da briga. Suspendeu todos os pagamentos devidos, colocou veículos da administração no rastro dos caminhões da empresa, procurando autuá-los –conforme a coluna já denunciou. Divulgada a denúncia, não só manteve o boicote financeiro contra a empresa, como baixou por lá um batalhão de fiscais do ISS, à cata de irregularidades.
A empresa propôs compensar o pagamento do ISS com os pagamentos devidos pela prefeitura. A proposta foi recusada. Pelo sim, pelo não, todos os pagamentos de ISS estão em dia.
Liberais em tese?
Como é que fica? Cobrou-se do Congresso uma posição firme em relação aos escândalos do Orçamento e à atuação das empreiteiras sobre o poder público. Agora, vai-se assistir passivamente a primeira empresa que ousou enfrentar o cartel ser asfixiada publicamente, à luz do dia? Em pleno Brasil pós-Collor e pós-CPI do Orçamento?
Como é que ficam as grandes batalhas da cidadania, a luta pela produtividade dos serviços públicos, o esforço nacional para impor a ética na política?
Não existe a figura do liberal em tese –ou se é, ou não se é. Os cardeais do PPR –expoentes do livre mercado, como os deputados Delfim Netto e Roberto Campos, ou o presidente da CPI do Orçamento, senador Jarbas Passarinho– precisam esclarecer urgentemente se essa iniquidade, que atenta contra os princípios da livre competição e da moralização dos serviços públicos, tem, ou não, o apoio do partido.

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